domingo, 30 de novembro de 2003

Amélia

            Três são as palavras, cada uma com a sua letra inicial maiúscula e com vida própria na qual não interfere a pontuação: enigmáticos títulos dos vinte e dois capítulos desse primeiro romance de Julieta de Godoy Ladeira, Entre lobo e cão (José Olympio, 1971) e que a revela uma escritora de imenso talento. Inicia-se com um episódio muito chão: a escolha de uma empregada doméstica entre as candidatas que foram se apresentando ao anúncio publicado. Nele, informando das condições de trabalho – apartamento pequeno, casal sem filhos – já se delineia algo da personagem que, no segundo parágrafo irá assumir o relato. Um relato denso em que as vozes se alternam, se entremeiam os tempos narrativos, mostrando, sem retoques, um universo feminino e o mundo pleno de contradições, espaço de uma trajetória desorientada, permeável a todas as agressões. Breves gestos, triviais cenas do cotidiano, enumeração de objetos, efêmeras imagens que a cidade oferece, escassas palavras, silêncios, lembranças e um testemunho lúcido sobre a sociedade com seus valores, na qual, ainda que à revelia, a dona da narrativa precisa viver.
 

            Entre os muitos personagens excepcionalmente construídos, destaca-se Amélia, cuja presença irá se instalar aos poucos. Primeiro, a sua voz arrastada, falando com cerimônia, seu olhar manso. Logo, a menção aos afazeres – fará o almoço, arrumará o apartamento e ao seu olhar conhecedor para a cozinha a perceber que a geladeira está nova, que os armários são espaçosos e forrados com papel alegre que as folhas das plantas estão tristes e amarelas. E, às opiniões que emite: o mar enferruja as coisas, é necessário cobrir a geladeira, as plantas foram vendidas sem raiz. E à promessa de trazer umas espadas-de-são Jorge e uns tinhorões que se desenvolvem dentro d’água. Páginas adiante, outros de seus traços (Pequena, mulata escura, rosto liso, olhos grandes muito abertos para as árvores da calçada, as folhas que caem, o cachorro doente no canto da rua [...]) e seu modo de vestir (saia lisa de seda pesada, blusa com enfeite e sem decote, bem lavada e com tanto uso que a cor mais viva está, apenas, perto das costuras) e de calçar (sapatos fechados, sem salto). E, entremeados à recordações da narradora, às suas dúvidas e inquietações dizendo de seu jeito humilde, de sua expressão doce e conformada, de seu sorriso e de sua voz mansa, o retrato vai se completando. Ao fazer o almoço, olha com ternura as folhas tenras do espinafre e se interessa em saber como a patroa prefere. Ao limpar a casa, o faz com cuidado: Quer bem os objetos como se fossem plantas, animais. Quando serve o chá, bem quente e com limão, se encosta no batente da porta e tirando um dos pés do sapato, vai encadeando as histórias. E se permite recriminar a patroa por não ter cuidado e abrir a geladeira com o corpo quente, por tomar café antes do banho, ou aconselhar que reforce as fechaduras, que não atenda qualquer um, seja um pedinte, seja uma oferta de tinturaria. Em sua serenidade, há desconfiança, susto, pressentimentos. Mas, ao falar das patroas para as quais já trabalhou, lhes elogia a bondade. E ao se referir ao homem com quem vive, o faz compreensivamente. Porque Amélia é o exemplo perfeito da Amélia que era mulher de verdade. Do Joaquim que trabalha como porteiro da noite de um edifício e lava os automóveis, sente pena e de manhã, antes de sair – O coitado chega morto de sono, vive se queixando – deixa o quarto arrumado e a comida pronta. Na convivência do cotidiano, vai revelando dessa relação feita só de perdas, continuação da outra, o ter emigrado para o Rio de Janeiro aos quinze anos, com a madrinha, sofrimento do qual não está livre, pois alimenta o desejo do retorno. Quando moça e usava tranças ao redor da cabeça, o corpo bem feito, e trabalhava no Leblon, Joaquim passava e assobiava. Ela acenava. Depois foram os presentes: biscoitos, corte de fazenda, pulseirinha de contas. Um cachorro. Também, um novo nome, Maria, que ela aceitou, dizendo não se importar: Mania, o que é que se vai fazer? E, assim, Maria, anônima, a compartilhar esse destino de mulher anônima, sem valor, conformada em aceitar uma vida a dois da qual os possíveis benefícios são devidos somente a um. No quarto alugado, no morro, Joaquim apenas dá o dinheiro para o arroz, o feijão, o bacalhau. Uma sobremesa, uma fruta – a gente então não gosta dessas coisas? – é Amélia quem compra. Quando ele juntou dinheiro foi para Portugal. Quis levar enxoval de luxo e presentes. Amélia mandou fazer-lhe um terno, bordou colchas com rendas ligando os quadrados de linho e ficou pagando o quarto. Só depois de um ano ele voltou, magro, estropiado, sem um presente e, ainda, trazendo um filho já homem, pois era casado em Portugal. Amélia, até que eles achassem trabalho, dava de comer aos dois, mesmo recebendo o desprezo do rapaz que a chamava de negra e exigia azeitonas e manteiga, cigarro, cerveja, graxa para os sapatos. Como cuidou do Joaquim doente, sempre carregada de frutas e doces que levava ao hospital, embora nada dele tenha recebido: Homem é assim mesmo a gente tem que passar por cima dessas coisas. Quando, por sua vez, foi operada e sem poder trabalhar, gastou todas as economias, dele não recebeu ajuda, uma visita, somente a pecha de estar na vadiagem.

            A narradora vai se deixando envolver pelas histórias que escuta, pelos percalços que dificultam a vida de Amélia, tenta ajudar. E seus olhos descobrem o morro e outras vidas que parecem somente ter o direito de serem maltratadas. Mas, suas poucas e mornas tentativas fracassam e, na verdade, nada pode fazer. Somente lhe resta a lucidez para constatar realidades que extrapolam o simples drama pessoal que é, apenas, conseqüência de outro maior: a ausência de cidadania. Algo que é possível perceber e que, no entanto, tem, estranhamente, permanecido distante do mundo ficcional brasileiro.

domingo, 23 de novembro de 2003

As árvores


Por vezes exalam perfumes, se vestem de cores. Ou, apenas, se justificam pelos pássaros que pousam em seus ramos. Em O Fiel e a pedra, mais do que se inscrever na paisagem, as árvores têm o significado que Bernardo e Teresa lhes conferem. Bernardo, passada a surpresa que os tiros de tocaia lhe causaram, caminha devagar e chega perto dos cajueiros que, floridos, liberavam um cheiro de resina de castanhas, levando à lembrança de sua mãe a tirar a casca dos cajus, pô-los num alguidar e depois, a secar ao sol. Teresa, ao chegar na casa, forte construção branca, de telhado quase negro, onde ela e o marido iriam morar, iniciando uma vida nova, viu as duas mangueiras raquíticas, já velhas, de poucas folhas e que pareciam jamais haver florido. No quintal, apenas uma groselheira e, mais distante, um grande laranjal. No topo da colina, podendo serem vistos da cozinha, os eucaliptos. Eram treze, ainda novos. Para Teresa, que logo os vira, significavam uma compensação: Oscilavam sob os ventos do entardecer. As sombras de alguns, desciam sobre o laranjal, animavam o quintal abandonado, faziam estremecer as paredes da cozinha. Os reflexos de ouro e violeta do sol davam às suas folhas, àquela hora, uma aparência de plumagem. Seus troncos macios brilhavam como de porcelana. Teresa, dentro do coração, teve o sentimento que nos meses que viriam, iria ter, nessas árvores que se pareciam com ela no talhe, companheiras fiéis. Elas iriam crescer e ela poderia saber, pela altura das folhas, o tempo de sua reclusão. Pois aquela não era sua casa e ali cumpriria, junto com Bernardo, apenas um tempo. O destinado a obterem meios para viver, alhures, melhor. Daí esse consolo na visão das árvores que encontra Teresa, um traço a completar-lhe o perfil de mulher que se adapta aos percalços da vida. 

            No mesmo ano em que recebia as provas de O Fiel e a pedra para corrigir, Osman Lins vivia a sua experiência na Europa. Seis meses em que, partindo, sempre, de Paris, onde foi bolsista da Aliança Francesa, viajou pela Itália, Espanha, Suíça, Bélgica, Holanda. Do que viu, deixou testemunho: Marinheiro de primeira viagem. Nele, breves cenas de rua, gente com as quais cruzou, rápidas descrições da paisagem no que ela tem de cambiante, de transitório. Assim, as árvores. Embora note, por vezes, somente a sua presença (poucas árvores numa paisagem do interior da França; uma fila de árvores cuja espécie desconhece, levando à pergunta que árvores são essas?) ou as reconhece (macieiras brancas, castanheiros, laranjeiras plantadas em tinas enormes; o salgueiro chorão a se inclinar romanticamente sobre as águas, ostentando seu verde claro e rutilante, como das esmeraldas) é, sobretudo, nas mudanças que sofrem com as estações que ele irá se fixar. Porque, ao chegar na Europa, em pleno inverno, encontrou essa realidade desconhecida para muitos habitantes dos trópicos: as árvores sem folhas. Que meses depois, veria reverdecerem, brilhando em pequenas folhas verdes, revestindo-se de uma penugem de verde ou de vermelho[...]. Causando-lhe a surpresa de descobrir, inesperadamente, essa renovação: Já não eram as árvores desnudas de janeiro ou de dois dias antes, ou da véspera. Envolvia-se uma espécie de nuvem rósea, os brotos estouravam, contavam-se aos milhares os pontos cor de vinho. Um coro vegetal, todas as árvores cantando, naquela tarde, a canção do fim de inverno. Julga compreender que, no mundo das incertezas, a primavera jamais falta ao encontro prometido, razão das festas com que, desde sempre, foi recebida pelos homens. Mas, principalmente, se trata, para Osman Lins de uma transformação que lhe aponta a passagem desse tempo que se escoou. No seu último passeio pelo parque de Luxemburgo, antes de voltar ao Brasil, ele constata: Deixava todas verdes aquelas árvores que, seis meses atrás, encontrara desnudas.

            Depois, em Portugal, já quase embarcando irá, ainda, registrar o transitório: das frutas, das flores e dos tons avermelhados nas vinhas, anunciando o outono.

 

domingo, 16 de novembro de 2003

Outra paisagem

            Havia terminado de escrever O fiel e a pedra e embarca para a Europa, como bolsista da Aliança Francesa, para uma permanência de seis meses que, mais tarde, afirmaria ter lhe sido marcante e, então, o assunto de Marinheiro de primeira viagem. Um livro que Osman Lins escreveu para se libertar das lembranças, fazer com que aquela pausa e seu encantamento passassem a fazer parte do passado. Nele evitou as descrições que podem ser encontradas em guias turísticos ou em enciclopédias e buscou fixar o transitório. Como disse numa entrevista, em 1963, quando o livro foi publicado: Do que não virá a repetir-se. E isto, o único, pode se constituir dos encontros que teve com Michel Butor, Robbe-Grillet, Jean Louis Barrault ou dos espetáculos de Edith Piaf, Juliette Greco, Edwige Feuillère, Léo Ferre que assistiu, de uma ou outra peripécia (dessas que soem acontecer aos turistas), das gravuras de Goya, dos quadros de Rousseau, do teatro de guignol, no Jardim de Luxemburgo, das estátuas de Rodin. E das notas sobre a paisagem.

            Na verdade, elas não são muitas. E, sempre, muito breves, apontando para o movimento, as cores e, por vezes, se entrelaçando às impressões do narrador. Este narrador que, no intuito de se poupar da intromissão do eu, diante de seus próprios olhos – assim o explica na mencionada entrevista a Esdras do Nascimento para A Tribuna do Rio de Janeiro – faz a narrativa na terceira pessoa. Mas, assim como a primeira pessoa do singular se permite, ainda que raramente, irromper no relato (acontece quando conta de suas andanças em busca do túmulo de Públio Virgílio Varo ou no texto em que sugere um certo restaurante de Amsterdam ou quando o narrador se torna presente ao empregar uma segunda pessoa plural, exigindo um interlocutor e, ainda, na seqüência em que o narrador concede voz à primeira pessoa), assim transparece, por momentos, embora disfarçada no outro, a presença desse eu que Osman Lins, por pudor (é a palavra que emprega) quer esconder.

            Em Capri, o vinho que bebe verte no seu coração, em grandes ondas, uma alegria que se derrama sobre a menina de tranças, os mastros dos navios, a fachada frutal da mercearia, a praia de pedrinhas, o reflexo do sol na proa dos veleiros, os peixes escondidos, as lâminas de sol no mar azul. E, espiam-no as casas de Sorrento, amontoadas umas sobre as outras, silenciosas, com as suas grandes arcadas senhoris. Fiel a sua determinação de fixar o passageiro, apenas uma expressão, uma curta frase lhe são suficientes para compor a imagem que deseja registrar. Ao viajar pela Holanda, as imagens se sucedem, muito rápidas e rápidas são as notas que originam: Roosendaal. Cortinas. Campos verdes, cisnes deslizando num lago, bois sob as macieiras. O primeiro moinho, rodeado de árvores como se lhes contasse uma história. Rotterdam, casas populares, panos coloridos nas janelas, secando ao sol, chaminés, guindastes, milhares de antenas de TV. Novamente o campo, outros moinhos. Delft, plantações em estufas, terraços com solenes frisos de cortinas, parecendo pálios. Haia, flores na estação, adeus, novas pastagens, Leiden, campos de tulipas amarelas, róseas, cor de laranja, canais, canais, Amsterdam. São impressões que se fixam no que não mais irá se repetir: cores, formas, detalhes, uma presença humana.

             Numa parede branca, os cachos de laranja cor de ouro; na paisagem, os campos verdes, as verdes planícies, um rio, os trigais, os girassóis, as flores cor de abóbora. Também, as cidades pardas sob a chuva, agudos campanários, casas de tijolo vermelho, telhados de ardósia, janelas brancas, vidraças esplendentes, cortinas rendadas. O mover-se de uma péniche, de alguém a vender rosas ou que, de mãos nos bolsos, olha o trem passar.

            Uma simplicidade no dizer que, vez ou outra, permite uma comparação: laranjas que pendem de pregos como de um altar pagão; por toda parte, em Volendam, gente de pincel na mão, pintando as esquadrias das casas. Como se o país fosse um navio. Ou, inesperadas combinações; gaivotas voando sobre um rebanho de ovelhas, vacas e bois deitados entre as tulipas, um cemitério no meio de uma plantação, vacas entre flores amarelas.

            Uma austeridade a cercear, sempre, as expansões da alma. Se expressas, deixam ver as sutilezas de um olhar para o mundo que percebe, como poucos, as nuanças do cenário que tem diante de si e o faz compreender, certa tarde, em Paris, que uma perspectiva, bela ao pôr do sol pode não o ser ao meio-dia, assim como as árvores desnudas pelo inverno podem revelar, em toda a sua elegância, um edifício em outras estações oculto pelo espessor da folhagem. E, também, que as mudanças, tão perfeitamente discerníveis – árvores nuas do inverno, árvores que reverdecem na primavera – anunciam o irreversível fluir do tempo. E o fluir do tempo nunca deixa de lhe estar presente – a alegria de pensar que, se quiser, poderá reter um pouco da manhã: estes barcos no rio, este casal sentado no café, o pombo que voou e foi pousar, suavemente, na torre de Saint Germain de Près – e, então, estar presente nos escritos que refazem seus dias na Europa. Que ele encerra num círculo ao fundir as primeiras impressões da viagem com as últimas para dar a impressão, ele explica, de que se trata de uma fase não inscrita no seguimento normal de sua vida.

            Fase que, passada, deixará lugar à vida por viver. Vida que o irá esperar do outro lado do Atlântico quando ele deixa para trás Paris, todas as suas lembranças para embarcar, assoviando, no avião que o leva de volta para casa.

domingo, 9 de novembro de 2003

Paisagem


            Densidade dramática no contínuo trato que deve ter Bernardo Vieira Cedro com o mundo medíocre e desprezível que o rodeia – luta ferrenha entre o se manter digno e norteado por princípios e o ceder à oferta de ganhos fáceis. Inusitado e profundo lirismo. Romance feito de trama simples – conflito entre o que tem posses e, conseqüentemente, poder e o desprovido de bens, mas cioso de uma absoluta integridade – que se enriquece nos embates travados por Bernardo consigo mesmo.

            O fiel e a pedra, publicado em 1961, na opinião de Massaud Moisés, expressa no texto que antecede o romance (edição da Summus, 1979) é, na trajetória de Osman Lins, um autêntico divisor de águas entre suas primeiras obras, O Visitante (1955) e Os gestos (1957) e as que mais tarde se lhe seguiram Nove, novena (1966) e Avalovara (1973). E nas palavras de quem, na mesma edição, lhe tece breve comentário, a observação de que, nesse romance, surgem descrições de ambientes exteriores não encontradas nos que o precederam.

 Na verdade, rápidas descrições da paisagem se inserem no relato. Repetidas vezes, se trata de um breve traço do narrador. Ao entrarem na cidade, Bernardo e sua mulher Teresa atravessam um parque de diversões: um vento agitava de leve as flâmulas de cor e por cima das barracas fechadas, dos carrosséis parados e desertos, a velha acácia floria contra o céu azul, os ramos cor-de-rosa pareciam cantar! Noutros, também um fixar-se no céu: o que se desanuvia depois da chuva, deixando brilhar as estrelas que, logo, dão lugar ao nascimento da manhã; o céu que, ainda, noturno, já se mostra de um azul mais frágil, mais polido e tênue, um azul vítreo. Igualmente fugaz, algo da paisagem em momentos que o personagem se dá conta do cenário que o rodeia. Teresa, pressentindo que, ao partir, sentiria saudades das verdes ondulações com suas claridades e sombras; Bernardo, olhando com desafogo a paisagem, os verdes tranquilos, o céu doce, o frio bueiro do engenho envolto numa luz dourada que se derramava sobre as telhas negras.

            Mas é, sobretudo, em dois recursos que se revela o domínio da narrativa que possui Osman Lins. Ao registrar as mudanças que ocorrem na paisagem – luz, movimentos, sons, cores, formas – o que aparece repetidas vezes, entrelaçado à percepção de Bernardo e de Teresa. Numa seqüência, Bernardo se lembra de uma tarde em que se sentiu calmo, em paz com seu destino: então, o animal em que montava bebia, balançando a cauda, as libélulas voavam, um casal de canários pousara nos arbustos e depois, voara, desaparecendo, cigarras cantavam e uma nuvem passara, mudara a cor das águas, avançara devagar, túrgida por um vento alto. Em outra, é Teresa que percebe as transformações pelas quais passa – ou segundo as horas ou segundo as épocas – a encosta próxima de sua casa e da certeza de que sempre a lembraria, cheia de névoa e tristeza nas manhãs de inverno, brilhante após a chuva, radiosa quando o sol nascia e tão bela nas tardes claras quando as sombras dos eucaliptos desciam lentamente a colina [...]. Pouco adiante, o narrador menciona a nuvem grande e cheia de vagar que passa diante do sol, o efêmero pousar de canários num ramo e o seu partir célere, duas setas amarelas afugentadas [...] e a emoção de Teresa quando, livre da nuvem, a luz voltou e ela viu as rosas: uma nascia e outra parecia cantar, as pétalas vermelhas desdobradas, tão farta em sua glória que o frágil caule pendia. Nas duas seqüências, diante do cenário feito de transitórias luzes e transitórias sombras, os personagens, repentinamente, têm consciência da felicidade plena que os invade e da tristeza que, imediata, irrompe para negar essa felicidade. Para Bernardo, uma faca a feri-lo no júbilo nascente, com tal violência e tanta rapidez, que a alegria ficara na ponta da lâmina, ainda viva, perdurável após o golpe. Para Teresa, ao olhar as rosas, o mundo esplendeu e ela sentiu-se também cheia de luz e alegre, soerguida numa onda muda que a houvesse arrebatado. Foi só um momento.

            E, muito hábil, a presença da paisagem, quando cenário para os atos dos homens e, principalmente, com a função de quebrar o ritmo da narrativa nos seus momentos de maior tensão. Como nas páginas finais do romance quando se enfrentam Bernardo Vieira Cedro e seu inimigo Nestor Benício para fazer o balanço na casa de comércio da qual era proprietário. Um diálogo difícil nas suas frases pequenas e incisivas se estabelece entre eles e, num crescendo, caminha para uma incontornável violência. Nestor Benício insiste na busca de uma definição, face as suas propostas inescrupulosas e deve, diante do silêncio do interlocutor, repetir o que dissera. Entre as duas interrogações, uma seqüência descritiva interrompe o fluir da ação: Cresciam as sombras. O claro chão do alpendre e o chão do pátio, verdes remotos, tudo se fechava, tendia para um negror de portas velhas. Na paisagem, como que nublada, naquela mútua infiltração e cores, terra e folhagem entretecendo-se, começando a fundir-se no tom pesado e baço do anoitecer, os homens quase imóveis destacavam-se, revestidos de um esplendor que os fazia mais sinistros, a luz em torno deles, lembrando esse fulgor mortal com que, em certos dias de chuva, um sol oculto endurece as saliências das nuvens. Vinham as sombras, marcavam as pregas das roupas, cavidades, rugas: e ombros, zigomas, dorsos das mãos, tudo fulgia como um brilho frio de arranhões no chumbo. Mais adiante, outra vez a proposta inescrupulosa, depreciando a plantação que estava a ser vendida e, entre ela -Dou duzentos! e a resposta -Por duzentos, prefiro não vender [...], a menção ao vento que agita a paisagem e que tendo passado a deixa imóvel: Na tarde de verão, houve como um ríspido vento de agosto, que agitou o bamburral, as árvores distantes, as bananeiras no córrego, o alpendre, deslizou pesado sobre as telhas. Um turbilhão de flocos voou das barrigudas gêmeas, girou suavemente em torno dos capangas. Passado o vento, a tarde pareceu mais dura e iníqua. Longe, contra o céu rosado, erguiam-se as mangueiras imóveis e nem as folhas dos bambus fremiam. Um mundo inteiriçado.

            Como que um paralelo com a ação que, na paisagem, se estava a incrustar: algo de violento e de passageiro antes de um retorno à imobilidade. Porém, o mundo dos homens não desfruta de lógicas nem de harmonias. Osman Lins, no desejo de esperanças, permitiu que, no seu relato, o degladiar-se, na certeza de bons motivos, tivesse algo de luminoso. Como luminosa foi a paisagem que os homens acompanhou.

domingo, 2 de novembro de 2003

Lembranças


Vinte anos se passaram desde que foi publicado, pela Martins Livreiro de Porto Alegre, O menino submerso, coletânea de vinte e dois sonetos (à qual se acrescem dez poemas), introduzidos por um breve texto: Fiquei para sempre com este ar de guri desconsolado / A olhar, a olhar o terreno baldio / Donde o circo partiu um dia antes...
 

            Na verdade, o guri desconsolado é esse menino submerso de um título que introduz a busca de Afif Jorge Simões Filho: a infância perdida. Porque, se os seus versos se detém no tempo que passa e na solidão, nas ausências e nos amores, ao longo deles se irá completar esse retrato que, acaso, pretendeu terminado. Mas, cujos traços se encontram nos cenários que inventa – um descampado de pedras, uma praia silenciosa e deserta, umas ladeiras de sonho – ou que a lembrança pontilha de tons luminosos: flor silvestre, ovelhas e balidos, paz campestre, cheiro bom de pastos florescidos, rumina o gado manso e distraído, olor casto de estábulo, prados floridos. E nos detalhes de um perfil: cabelos que embranquecem, olhar que se perde ou se cansa, mãos que ficam pálidas, dizem de um tempo que passou, de um ser solitário e em meio a muitas ausências que, na verdade, se entrega nas confissões doloridas, enleando-se em sentimentos que vivem na lembrança ou aspiram realizar-se. Os pais já não estão, os afetos e a velha casa não mais existem e as mulheres que amou, trilham outros caminhos. E os amores são feitos de anseios da presença feminina - Falta a tua presença ardente que resume / Todo o esplendor da vida e toda a primavera

- e do enlevo que ela pode oferecer.

            Embora pairem tristezas e melancolias em todos os sonetos, pois ao poeta ninguém escuta e  a solidão o tornou amargo e porque o seu canto  não é mais grito e a felicidade foi perdida, porque trança rugas o tempo tecedor é no “Soneto ante a tapera de meus pais” que se eleva, intensamente emocionado, o lamento sobre o que foi e não retorna. Um antes e um agora no conflito que o passar do tempo determina: o esboroar-se de um mundo (madeira podrida, triste alvenaria em decadência, extintos figurantes, pais distantes), num  mundo que continua a ser igual (são diversos os bois, mas o mugido / É o mesmo. O mesmo arroio entre amarilhos, no seu longo soluço enternecido  / o arvoredo alto...). Nesse mundo que existe e não existe, vencido pelo inevitável, o adulto a carregar dentro de si o eterno menino, o menino submerso que deseja a liberdade das lágrimas para chorar o quê a vida legislou: a perda da infância, a perda dos pais, a perda do primeiro ninho. Então, entre as lembranças do bem que passou e o presente, envolto no imutável e povoado de vazios, as certezas que os dois últimos versos enunciam: Que todas as moradas são exílios, / E aqui, onde eu não moro, é que é meu lar. E nesses versos se configuram a síntese perfeita de toda a emoção expressa nas estrofes anteriores e a obediência às leis da métrica tradicional que pede assim, numa expressão intocável, finalize o soneto.

            Em decassílabos, próprios do soneto clássico, “Soneto ante a tapera de meus pais” não transporta a rima para o segundo quarteto e nos tercetos as dispõe livremente, como o permite a estrutura do soneto moderno numa junção que, aliada ao domínio da palavra – reconhecido por Mario Quintana, Carlos Nejar e Eduardo Degrazia, membros da Comissão Julgadora que lhe concedeu o prêmio Apesul Revelação 78 –, justifica figurar o seu autor, um gaúcho de São Sepé, entre os sonetistas famosos da Literatura Brasileira, como bem o lembrou Carlos Reverbel ao assinar o prefácio de O menino submerso.