A
historinha pertence ao “Do Caderno H”, publicado no “Caderno de Sábado”, do Correio
do Povo de Porto Alegre, no dia 19 de abril de 1980: Mário Quintana conta
desse espanhol, Dom Pedro Manuel de Urrea, que poetava na época da invenção da
imprensa e empalidecia só de pensar que
seus versos, com isso, corriam o risco de ser lidos até mesmo nas
adegas e cozinhas. Suscetibilidade que muito divertiu o Poeta
gaúcho e que o fez se dar conta de que, se a sua formação democrática impedia
exclusões de classe, fazia, no entanto, exclusões
em todas as classes, pois ele,
somente, podia contar com, aqueles poucos, as exceções que lêem poesia. E
parece que ele não duvida lhe estarem próximos, porque nos “Do Caderno H”,
desse mesmo ano, não são poucos os versos dirigidos a um interlocutor. Eles
pertencem aos poemas “Pedra Rolada” (6 de setembro), “Encantação da Primavera”
(20 de setembro), “Escadas” (25 de outubro), “Bilhete” e “Oferenda” (29 de
março), “Do temor da morte” (21 de junho) e interpelam, ordenam, aconselham,
legislam e pedem, o que é da alçada de um poeta que se permite a troça e o non
sense, a roçar-lhe o lirismo. As perguntas que faz – Mas que podes temer?, Ah, tu
querias que eu te embalasse?! – e
que não deixa sem resposta – Tu estás vivo...e basta!, Eu estava, apenas, explorando uns abismos... – pode ser a esse
interlocutor com quem compartilha o imaginado e o cotidiano. Sugere que repare
em certas coisas (se não é / O Espírito
Santo que vem descendo em lento vôo) que olhe outras tantas (a avó
atravessando a rua com sua neta pela mão). Por vezes, lhe aconselha prudência (não fiques eufórico, – nem tudo são rosas) ou, submete as suas
vontades, determinando o que deve ser feito (Esta pedra que apanhaste à
beira do caminho [...] Deposita-a no chão, cuidadosamente...
Mas,
apesar da precisão do pronome tu, esse interlocutor também pode
significar todos os humanos ou, simplesmente, esse outro eu, confidente de si
mesmo. O eu que teme a morte e a exorciza, afirmando que A única morte possível é não ter nascido; o eu que divaga e se
enleia em mistérios que imagina – escadas de caracol que descem como nas histórias de imortal horror, fantasma chamejante e fosfóreo, escadarias de
velhos edifícios públicos – e quer o
refúgio de fechar os olhos, a pensar
em felicidades: cascatas de riso / Escada
abaixo, crianças saindo da escola. O eu que irá se expor sem peias nos
poemas “Oferenda” e “Bilhete” ao se dirigir ao feminino, razão dos dois poemas.
“Oferenda”
é um poema de três versos. Coloquial e extremamente simples, o primeiro: Eu queria trazer-te uns versos muito
lindos..., anunciando uma intenção que o tempo do verbo já decreta não ter
sido cumprida e que o segundo verso irá confirmar: Trago-te estas mãos vazias, expressão melancólica de um fracasso
que se dissipa no terceiro verso: Que vão
tomando a forma de teu seio,
soberbamente inspirado nesse dizer da transformação do nada em carícia plena e
aceite.
“Bilhete”
tem a despretensão do título (algumas palavras, não uma carta), negada diante
da importância do destinatário – Amada – e do pedido que lhe é dirigido: uma
ordem ou uma súplica feita de dúvida e de certeza. O pronome se, expondo
um possível sentir – Se tu me amas –
que, se existente, deverá determinar o modo de amar: Ama-me baixinho, bem
devagarinho. Intensidade submissa ao axioma daquele que é amado e decreta: que a vida é breve e o amor mais breve, ainda..., o que talvez seja outra das
invenções do Poeta, na mágica de criar e recriar-se num mundo de palavras e de
sonhos.

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