domingo, 3 de agosto de 2003

O poeta e o outro

            A historinha pertence ao “Do Caderno H”, publicado no “Caderno de Sábado”, do Correio do Povo de Porto Alegre, no dia 19 de abril de 1980: Mário Quintana conta desse espanhol, Dom Pedro Manuel de Urrea, que poetava na época da invenção da imprensa e empalidecia só de pensar que seus versos, com isso, corriam o risco de ser lidos até mesmo nas adegas e cozinhas.  Suscetibilidade que muito divertiu o Poeta gaúcho e que o fez se dar conta de que, se a sua formação democrática impedia exclusões de classe, fazia, no entanto, exclusões em todas as classes, pois ele, somente, podia contar com, aqueles poucos, as exceções que lêem poesia. E parece que ele não duvida lhe estarem próximos, porque nos “Do Caderno H”, desse mesmo ano, não são poucos os versos dirigidos a um interlocutor. Eles pertencem aos poemas “Pedra Rolada” (6 de setembro), “Encantação da Primavera” (20 de setembro), “Escadas” (25 de outubro), “Bilhete” e “Oferenda” (29 de março), “Do temor da morte” (21 de junho) e interpelam, ordenam, aconselham, legislam e pedem, o que é da alçada de um poeta que se permite a troça e o non sense, a roçar-lhe o lirismo. As perguntas que faz – Mas que podes temer?, Ah, tu querias que eu te embalasse?!   e que não deixa sem resposta – Tu estás vivo...e basta!, Eu estava, apenas, explorando uns abismos... – pode ser a esse interlocutor com quem compartilha o imaginado e o cotidiano. Sugere que repare em certas coisas (se não é / O Espírito Santo que vem descendo em lento vôo) que olhe outras tantas (a avó atravessando a rua com sua neta pela mão). Por vezes, lhe aconselha prudência (não fiques eufórico, – nem tudo são rosas) ou, submete as suas vontades, determinando o que deve ser feito (Esta pedra que apanhaste à beira do caminho [...] Deposita-a no chão, cuidadosamente...



            Mas, apesar da precisão do pronome tu, esse interlocutor também pode significar todos os humanos ou, simplesmente, esse outro eu, confidente de si mesmo. O eu que teme a morte e a exorciza, afirmando que A única morte possível é não ter nascido; o eu que divaga e se enleia em mistérios que imagina – escadas de caracol que descem como nas histórias de imortal horror, fantasma chamejante e fosfóreo, escadarias de velhos edifícios públicos – e quer o refúgio de fechar os olhos, a pensar em felicidades: cascatas de riso / Escada abaixo, crianças saindo da escola. O eu que irá se expor sem peias nos poemas “Oferenda” e “Bilhete” ao se dirigir ao feminino, razão dos dois poemas.

            “Oferenda” é um poema de três versos. Coloquial e extremamente simples, o primeiro: Eu queria trazer-te uns versos muito lindos..., anunciando uma intenção que o tempo do verbo já decreta não ter sido cumprida e que o segundo verso irá confirmar: Trago-te estas mãos vazias, expressão melancólica de um fracasso que se dissipa no terceiro verso: Que vão tomando a forma de teu seio, soberbamente inspirado nesse dizer da transformação do nada em carícia plena e aceite.

            “Bilhete” tem a despretensão do título (algumas palavras, não uma carta), negada diante da importância do destinatário – Amada – e do pedido que lhe é dirigido: uma ordem ou uma súplica feita de dúvida e de certeza. O pronome se, expondo um possível sentir­ – Se tu me amas – que, se existente, deverá determinar o modo de amar: Ama-me baixinho, bem devagarinho. Intensidade submissa ao axioma daquele que é amado e decreta: que a vida é breve e o amor mais breve, ainda..., o que talvez seja outra das invenções do Poeta, na mágica de criar e recriar-se num mundo de palavras e de sonhos.

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