domingo, 24 de agosto de 2003

De autoridades...


            Em 1942, Dyonélio Machado publica, pela Editora Globo de Porto Alegre, O Louco do Cati (Aventura) cujo nome do capítulo inicial, “A primeira aventura foi no bonde”, reafirma o anunciado no sub-título do romance. E, certamente uma aventura para o louco do Cati, essa longa viagem que o levará de Porto Alegre ao Rio de Janeiro e, de volta, até o extremo sul do Rio Grande. Um percurso no qual ele irá machucar o pé, ser preso e ser posto em liberdade; em que viajará  na caminhonete “Borboleta”, de ônibus, de navio, de caminhão, de trem e de avião; em que irá ganhar agasalho e hospedagem e o cuidado das pessoas que dele se encarregam. Breves episódios que se sucedem, galeria de tipos que desfilam, algo do cenário que se desenha para mostrar esse mundo cotidiano revelado, sobretudo no prosaico, iluminado, às vezes, pelo gesto solidário ou se definindo pelo ridículo que envolve os homens quando se permitem o preconceito ou se atribuem uma autoridade, não raro, estapafúrdia. Como Dyonélio Machado tem olhos para as bondades de que eles são capazes, não lhes escapam, tampouco, esses momentos em que impera a tolice e, maior,  quando advinda daqueles que se acreditam donos do poder (valha o lugar comum) e da verdade. Assim,os episódios em que se defrontam os delegados, o comandante do navio, o chefe da escolta policial e outras  pretensas autoridades menores com aqueles que lhe são ou que devem lhes ser, presumivelmente, submissos.

O delegado de Araranguá, cidade onde Norberto (seria esse o seu verdadeiro nome, Norberto Molina ou José Cândido Morais?) e seu companheiro, o louco do Cati (do qual nunca foi sabido o nome) foram presos, diante do impasse  de lhes conhecer os verdadeiros nomes, sugere que fosse dada a maior  consideração possível aos dois nomes, não porém, ao sujeito em si.  Entre as resoluções, que o caso lhe parecia merecer, tomou, logo, várias e, entre elas, a de considerar os dois sujeitos como presos de importância, pois, na sua opinião, trancafiar alguém sem saber porquê, apenas para agradar a ilustres desconhecidos significa ser esse alguém, de importância. Por outro lado, o ter o companheiro de Norberto gritado, quando foram detidos, levou a polícia a considerar o grito sedicioso e o homem um agitador. Daí a dúvida e o jogo de opiniões, travado no gabinete do delegado: se eles se constituíam um tesouro, que nas mãos da autoridade local seria sem proveito, deveriam ser transferidos. E o capítulo com o sugestivo título de “Um tesouro”, termina com o que foi feito:  E despacharam os indivíduos para Florianópolis.

O outro delegado é do Rio de Janeiro. De rosto pálido, muito bem cuidado, muito distinto, vestindo roupa leve e usando  na mão bonita, bem tratada, um anel de bacharel. Chegou tarde, sentou-se à mesa, logo rodeada pelos altos funcionários, trazendo assuntos para ele resolver o que fazia com pressa, não tinha muito tempo para destinar à repartição. Depois, deu ordens terminantes ao comissário e foi para outra peça, seguido por uma enorme cauda da subalternos, que iam muito satisfeitos, a julgar pelo muito que sorriam entre si.

            No capítulo “Descendo”, o navio segue o seu curso, quando, ao entardecer, dois marinheiros levam  à presença do Comandante o clandestino, acusado de falar mal dele. O diálogo então travado, revela a preocupação do alto funcionário da empresa em saber o que, sobre a sua pessoa, havia sido dito e a submissão dos marinheiros, de olhos baixos, a cabeça abanando cautelosamente, todo um respeito organizado diante da ira do superior.  Além da técnica inventiva, tão própria de Dyonélio Machado, na construção formal do diálogo, a ele se acresce o inesperado motivo de riso com  o qual ele se conclui: -E o que foi que ele disse de mim? – Ele fez: - Huum... – Meta nas grades!.

            Na viagem de navio para o Rio de Janeiro, o chefe da escolta (eram cinco investigadores, duas praças e  um sargento), interpelado por Norberto, que pedia para fazer a barba, argumenta que só havia barbearia na primeira classe e, portanto, impossível de  levar dois presos para lá. Pensara em trazer o barbeiro para o refeitório, mas dependia do comissário de bordo consentir. Norberto, então, pergunta por que não levar o barbeiro para o camarote. A reposta foi que isso era  impraticável pois eles deviam ser mantidos incomunicáveis. E diante do argumento do preso que tanto importava, quanto ao conceito de incomunicabilidade cortar a barba num canto do refeitório como metido no camarote, ou que, então não apanhava bem o sentido da coisa, o chefe da escolta teve o seu sorriso superior de orgulho profissional. – Só mesmo nós, pra pegar bem essa figura jurídica. 

É um nós que também  aparece e em itálico no primeiro capítulo do romance quando o personagem vai pagar a passagem com um dinheiro falso que o cobrador reconhece e rejeita. Logo, depois, porém,  já no meio do bonde, explica que se fosse por ele, receberia o dinheiro mas nós não podemos aceitar. Frase a dar ensejo à intromissão do narrador que aparece entre parêntese para comentar que em toda parte há os que dizem nós e se escusam ou se justificam de qualquer coisa que só a eles não se permite.

            E, subjacente, o nós contido do empregado da delegacia, diante da insistência de um rapaz em querer ser ouvido pelo delegado e que ele  atendia com um sorriso em que havia perdão pela ignorância da pessoa do povo com respeito  aos trâmites judiciais.

São perfis, atitudes, frases que Dyonélio Machado insere no relato com seus experientes recursos de um narrador que sabe muito bem de que barro são feitos os humanos. Porque em O Louco do Cati é dos humanos que se trata.


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