Em
1942, Dyonélio Machado publica, pela Editora Globo de Porto Alegre, O Louco do Cati (Aventura) cujo nome do
capítulo inicial, “A primeira aventura foi no bonde”, reafirma o anunciado no
sub-título do romance. E, certamente uma aventura para o louco do Cati, essa
longa viagem que o levará de Porto Alegre ao Rio de Janeiro e, de volta, até o
extremo sul do Rio Grande. Um percurso no qual ele irá machucar o pé, ser preso
e ser posto em liberdade; em que viajará
na caminhonete “Borboleta”, de ônibus, de navio, de caminhão, de trem e
de avião; em que irá ganhar agasalho e hospedagem e o cuidado das pessoas que
dele se encarregam. Breves episódios que se sucedem, galeria de tipos que
desfilam, algo do cenário que se desenha para mostrar esse mundo cotidiano
revelado, sobretudo no prosaico, iluminado, às vezes, pelo gesto solidário ou
se definindo pelo ridículo que envolve os homens quando se permitem o
preconceito ou se atribuem uma autoridade, não raro, estapafúrdia. Como
Dyonélio Machado tem olhos para as bondades de que eles são capazes, não lhes
escapam, tampouco, esses momentos em que impera a tolice e, maior, quando advinda daqueles que se acreditam
donos do poder (valha o lugar comum) e da verdade. Assim,os episódios em que se
defrontam os delegados, o comandante do navio, o chefe da escolta policial e
outras pretensas autoridades menores com
aqueles que lhe são ou que devem lhes ser, presumivelmente, submissos.
O delegado de
Araranguá, cidade onde Norberto (seria esse o seu verdadeiro nome, Norberto
Molina ou José Cândido Morais?) e seu companheiro, o louco do Cati (do qual
nunca foi sabido o nome) foram presos, diante do impasse de lhes conhecer os verdadeiros nomes, sugere
que fosse dada a maior consideração possível aos dois nomes,
não porém, ao sujeito em si. Entre as
resoluções, que o caso lhe parecia merecer, tomou, logo, várias e, entre elas,
a de considerar os dois sujeitos como presos de importância, pois, na sua
opinião, trancafiar alguém sem saber porquê, apenas para agradar a ilustres desconhecidos significa ser
esse alguém, de importância. Por outro lado, o ter o companheiro de Norberto
gritado, quando foram detidos, levou a polícia a considerar o grito sedicioso e
o homem um agitador. Daí a dúvida e o jogo
de opiniões, travado no gabinete do delegado: se eles se constituíam um tesouro, que nas mãos da autoridade
local seria sem proveito, deveriam ser transferidos. E o capítulo com o
sugestivo título de “Um tesouro”, termina com o que foi feito: E
despacharam os indivíduos para Florianópolis.
O outro delegado é do Rio de
Janeiro. De rosto pálido, muito bem
cuidado, muito distinto, vestindo roupa leve e usando na mão
bonita, bem tratada, um anel de bacharel. Chegou tarde, sentou-se à mesa,
logo rodeada pelos altos funcionários, trazendo assuntos para ele resolver o
que fazia com pressa, não tinha muito
tempo para destinar à repartição. Depois, deu ordens terminantes ao
comissário e foi para outra peça, seguido
por uma enorme cauda da subalternos, que iam muito satisfeitos, a julgar pelo
muito que sorriam entre si.
No capítulo “Descendo”, o navio
segue o seu curso, quando, ao entardecer, dois marinheiros levam à presença do Comandante o clandestino,
acusado de falar mal dele. O diálogo então travado, revela a preocupação do alto funcionário da empresa em saber o
que, sobre a sua pessoa, havia sido dito e a submissão dos marinheiros, de olhos baixos, a cabeça abanando
cautelosamente, todo um respeito organizado diante da ira do superior. Além da técnica inventiva, tão própria de
Dyonélio Machado, na construção formal do diálogo, a ele se acresce o
inesperado motivo de riso com o qual ele
se conclui: -E o que foi que ele disse de
mim? – Ele fez: - Huum... – Meta nas grades!.
Na viagem de navio para o Rio de
Janeiro, o chefe da escolta (eram cinco investigadores, duas praças e um sargento), interpelado por Norberto, que
pedia para fazer a barba, argumenta que só havia barbearia na primeira classe
e, portanto, impossível de levar dois
presos para lá. Pensara em trazer o barbeiro para o refeitório, mas dependia do
comissário de bordo consentir. Norberto, então, pergunta por que não levar o barbeiro
para o camarote. A reposta foi que isso era
impraticável pois eles deviam ser mantidos incomunicáveis. E diante do
argumento do preso que tanto importava,
quanto ao conceito de incomunicabilidade cortar a barba num canto do refeitório
como metido no camarote, ou que,
então não apanhava bem o sentido da coisa,
o chefe da escolta teve o seu sorriso
superior de orgulho profissional. – Só mesmo nós, pra pegar bem essa figura
jurídica.
É um nós que também aparece e em itálico no primeiro capítulo do
romance quando o personagem vai pagar a passagem com um dinheiro falso que o
cobrador reconhece e rejeita. Logo, depois, porém, já no meio do bonde, explica que se fosse por
ele, receberia o dinheiro mas nós não
podemos aceitar. Frase a dar ensejo à
intromissão do narrador que aparece entre parêntese para comentar que em toda parte há os que dizem nós e se
escusam ou se justificam de qualquer coisa que só a eles não se permite.
E, subjacente, o nós contido do empregado da delegacia,
diante da insistência de um rapaz em querer ser ouvido pelo delegado e que
ele atendia
com um sorriso em que havia perdão pela ignorância da pessoa do povo com
respeito aos trâmites judiciais.
São perfis, atitudes, frases
que Dyonélio Machado insere no relato com seus experientes recursos de um
narrador que sabe muito bem de que barro são feitos os humanos. Porque em O Louco do Cati é dos humanos que se
trata.

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