domingo, 17 de agosto de 2003

O preto e o branco

Jamais se espichem nos temperos é o primeiro conselho antes de passar às receitas da culinária típica do gaúcho sul-rio-grandense. Durante anos, o tradicionalista Glaucus Saraiva os foi coletando entre pessoas simples, sobretudo na região campeira. E, então, simples são os pratos que enumera: Arroz simples, Arroz com couve ou repolho, Arroz com pêssego (inchado), Arroz com bucho, Arroz com lingüiça, Arroz com galinha, Arroz de carreteiro, Feijão preto, Feijão simples, Feijão mexido, Feijão miúdo, Sopa de feijão, e Preto e branco. Eles tem  poucos segredos (pitada de açúcar para quebrar o amargo do pêssego, não pôr sal no início do cozimento do feijão porque ressabeia) nesse mínimo de condimentos de uma cozinha ainda não contaminada pelas novidades importadas de outras plagas. E as recomendações, para chegar a bom termo da cada receita, reafirmam que o sabor do ingrediente básico não deve ser anulado pelo excesso de condimentos e, muito menos, por outros bagulhos de que o gaúcho campeiro nunca ouviu falar. A elas se juntam outras, corriqueiras e, quem sabe, desnecessárias ou não, sobre a intensidade do calor do forno (leve, esperto, forte) ou sobre as medidas, pois não enfrentando bem estas, qualquer receita destrilha e ele cita: xícara, copo, cálice de licor, colher de sopa, colherinha, punhado (a quantidade retida na mão fechada), pitada (a quantidade retida na ponta de uma faca de mesa ou no bico de uma colher de sopa). Tampouco esquece de dizer que a limpeza  é o apanágio de todo bom cozinheiro. No entusiasmo dos sabores,  La fresca, que coisa boa!..., exclama para o mondongo com arroz  e dos cheiros,  o irresistível do arroz de carreteiro, o cheiroso e gostoso de arreganhar as ventas e tremer os beiços do feijão – acaba por legislar que um prato bem feito é um poema.
 
Em “Culinária Gauchesca – Folclore”, texto do “Caderno de Folclore”, que o Correio do Povo de Porto Alegre publicou em 14 de dezembro de 1976, ele não apenas ensina a fazer o arroz e o feijão como o seu linguajar denota o quanto nele convivem, e em harmonia, os dons de cozinhar e de poetar.

A não ser destrilhar, não dicionarizado, com o sentido de sair da linha, e de guasquear regionalismo do Rio Grande do Sul que significa fustigar com a guasca (tira ou correia de couro cru) ou com outro açoite qualquer, os verbos acolherar, amansar, assanhar, bufar, ciscar corcovear, entropilhar, roncar, ressabear, sapecar, de uso corrente, são reinventados nas receitas, quando Glaucus Saraiva lhes dá um inesperado sujeito: o arroz que, ao fritar, recebe a água fervente e que, então, vai corcovear, roncar e bufar mas, que logo se amansa. Os ingredientes para o feijão miúdo que devem ser bem dosados, pois quase todos se entropilham. Ou, os parceiros que podem se acolherar ao feijão. Também, inesperado objeto direto: assanhar a pimenta na panela.

A esse uso de verbos que remetem às atividades típicas do gaúcho nas suas lides campeiras, se acresce o emprego das comparações e das expressões que distinguem a fala sul-rio-grandense. Tendo como primeiro elemento o arroz, as comparações, no seu segundo elemento, se atém ao que está próximo: os grãos de arroz devem ficar bem soltinhos como areão seco, se feito a preceito, o arroz fica cheiroso, soltinho, branco e lustroso como dente de cachorro novo e quando ferve e se alvoroça, é como potro laçado pelas virilhas.
E alguns termos (querendão, bombear, chaira, matambre, guaiaca), o uso de diminutivos (trotezito, carregadito) ou de expressões a moda fronteiriça (ferver no mais) reafirmam a geografia em cuja mesa campeira reinam o arroz e o feijão. Num estudo ímpar de singeleza e lirismo, Glaucus Saraiva lhes canta a simplicidade e o sabor.

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