domingo, 6 de julho de 2003

Antigamente


Apparício Silva Rillo nasceu em Porto Alegre e com pouco mais de vinte anos, abandonando os estudos, foi trabalhar num empório comercial dos arredores de São Borja e, depois, na cidade, que não mais iria deixar. Em 1959, publicou seu primeiro livro de versos, Cantigas do tempo velho, ao qual se sucederiam Doze mil rapaduras e outros poemas (1984) e Poço de balde (1991), além dos livros de contos, de causos gauchescos e dos que se reportam às corridas de cancha reta e ao jogo do osso, expressão de seu trabalho como pesquisador das tradições e do folclore do Rio Grande do Sul. Em 1980, publica, no “Caderno de Sábado” do Correio do Povo de Porto Alegre, um poema dedicado a sua terra de adoção: “São Borja, 1920”. São seis estrofes com número díspar de versos (entre oito e dez), sempre introduzidos pelo refrão, grafado em caixa alta, naqueles tempos, sim, naqueles tempos e uma última, construída em dois tempos: oito versos aos quais se acrescentam mais quatro e o refrão que finaliza o poema. Um poema – e o título já o indica – a cantar um passado no qual cabem as casas e seus moradores e a vida, transcorrendo tranqüila. Desenhadas e com suas telhas portuguesas, balcões, sacadas, porões e sótãos, com as portas altas e alto o pé direito das suas salas, as casas se suavizam nas cores que ostentam – azuis claros, ocre, branco e amarelo – e se antropomorfizam nos adjetivos que as fazem cálidas, solenes, sob o abrigo das telhas maternais, com suas acolhedoras latrinas de madeira, sua água armazenada em barril barrigudo. E se enchem de vida com seus jasmineiros sobre o muro, suas laranjeiras, galos e cachorros no quintal. Vida que se estende, soberana, nas pessoas que as habitam: os homens, usando barba, indo ao clube, ajudando as obras da igreja; as mulheres, fazendo filhos, bordados, velas de sebo e sabão, rosquinhas e tachadas de doce, rezando na igreja, plantando flores e temperos. Então, o esboço do quadro se amplia na igreja e no poder. O padre, cumprindo suas funções em latim e, conviva, na mesa do prefeito; os homens mais convictos nas armas que nos santos e os coronéis de galões ganhos nas batalhas.

E o afetivo que torna tudo luminoso -  a latrina acolhedora, disfarçada entre as plantas, a água no barril e uma concha para a sede, as casas, por vezes, sem reboco, a batina manchada do padre, os velórios, a morte, o ritual de reprodução do gado – se aprofunda na última estrofe. Inscrita na primeira pessoa do plural, engloba toda a gente que descende desses homens e dessas mulheres para assumir o passado, que o poeta toma, também, como seu, cristalizado nas casas, estâncias e sesmarias e se enriquecendo com o som da terra (no caso o berro dos bois), com o significado dos retratos que pendem das paredes. Sobretudo, se cristaliza com os valores herdados – a barba dos avós como um selo no queixo – e com a carga de afeto, prazerosa, do doce das avós na memória da boca.

            Universo já ido a entrelaçar vidas e um jugo ao qual Apparício Silva Rillo se submete no poetar espontâneo que não precisa de rimas, nem de ritmos e se alimenta do inspirado uso de um verbo (janelas que espiavam), de um advérbio (morriam discretamente), de um adjunto (receitas de panela farta), cujos sentidos se completam nesse cultuar do espaço (da sombra verde para o sol das ruas) e das gentes (que ficavam nos retratos, que sabiam receitas). Mas se o refrão afirma e reafirma o que foi – Naqueles tempos, sim, naqueles tempos – o poeta traz de volta, com a sua voz inspirada, plena de emoção, a realidade que imagina.

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