Havia um homem que trabalhava no alto de um
andaime, pois era carpinteiro e trabalhando estava essa manhã quando sentiu uns
violentos desejos de beber. Ramón Neira, personagem de El compadre,
de Carlos Droguett, publicado pela Joaquín Moritz, do México, em 1967. Já no
segundo parágrafo do romance, consta o que ele imagina irá acontecer um dia:
cair, voando sobre a multidão. E o romancista chileno lhe segue os passos, indo
pelas ruas, no ônibus, a cumprir o cotidiano itinerário quando termina o dia, chegando
em casa onde a mãe espiava o horizonte
escurecido para ver se ele já vinha,
tossindo com o cigarro entre os dentes. Lavando-se na torneira do pátio ou
dormindo sob esse horrível teto de zinco,
tão negro e sufocante, que era uma linha de fogo no verão. Sonhando. Divagando. Segue-lhe, também, os passos
quando entra na igreja para propor a São Judas Tadeu que seja o padrinho de seu
filho, já com oito anos e sem batizar. Embora a narrativa se apresente cheia de
zonas de sombra, um recurso certamente caro a Carlos Droguett, ela não é
cerceada pelo tempo ou pelos silêncios do personagem, pois é senhora de seu
pensar, de seu sentir e de seus sonhos. O relato se faz desse presente,
compreendido entre o momento em que o carpinteiro sente um violento desejo de
beber e de sua última conversa com o santo, depois de um interregno em que
passou um dia dormindo e outro bebendo no bar. Nele se inserem cenas fugazes do
que acontece ao seu redor, alguns momentos de seu passado, seus monólogos
diante da imagem de São Judas Tadeu. Pedaços de vida que seus olhos registram
(os dois gringos conversando na calçada, a jovem mulher que reza na igreja, a
criança, doente, chorando dentro de seu feio carrinho), ou que ouve (o diálogo
dos carroceiros na madrugada, o dos homens na igreja, a confissão da velha,
falando aos gritos). Lembranças que lhe afloram e dão conta de seu passado: a
morte, o velório e o enterro do pai; a morte, o velório e o enterro de
Alessandri, presidente do Chile, para ele o
velhinho negro; seus amores com
Yolanda, com quem se casa; o acidente que sofreu, caindo do andaime. Lembranças
que retornam aos poucos, mesclando-se às divagações e aos sonhos, construindo a
sua história de trabalhador pobre cuja vida transcorre nos andaimes. E se é no
andaime que ele se sente seguro (Aí em
cima estava bem, era feliz, era o amo, entre o vento e os ruídos distantes[...])
e onde vive suas horas mais felizes, é dele que pensa – e com lucidez e até imaginando estar doente
por isso – um dia cair para a morte. Conjetura que lhe vem repetidas vezes à
mente e se constitui um leit-motiv do relato. Ora a partir do fato concreto, o
de ter caído, ora a partir do que ele presume poderá acontecer.
Trabalhava
na construção de um hotel sobre as rochas, na cordilheira. Era inverno, havia
neve e ele sentia muito frio e a tosse
não o soltava. As tábuas do andaime quebraram (noutro momento diz que
resvalara nas tábuas olhando distraído
os que patinavam no meio dos pinheiros) e ele escutou o companheiro gritar colega, irmão, não se mate. Um pouco
antes tinha começado a lhe dizer algo e antes de receber a resposta já estava
com o pé no vazio. Lembra que vinha caindo lento
como a neve, como nela ficou enterrado, como o doutor o tratou e já enuncia
as suas desconfianças em relação à mulher. Que estão presentes – justificadas
ou oriundas de sua imaginação, turvada pela bebida – muitas outras vezes. Ele
se pergunta por que o amor de Yolanda já não mais existe e sabe que sempre que
desce do andaime já está bêbado e briguento e a deixa com medo. Daí conclui
que, se cair do andaime, será uma boa solução para ela, acreditando – ainda que
ela demonstre medo de que tal aconteça, ainda que lhe peça para não cair – que
é o que deseja, o que há muito tem desejado.
Por
vezes, imagina que, ao cair, as pessoas, gritando, se afastarão, assustadas;
que irá voar sobre a multidão antes de cair; que chegará ao céu, gritando com
escândalo para entrar onde está fresco e não faz vento. Outras vezes,
admite ter medo porque é preciso ter muito
medo para não soltar as mãos e começar a flutuar para baixo, leve e rápido
compreendendo que vai morrer arrebentado
mas não sentindo dor nem angústia[...]. Também, não deixa de compreender
quando recebe uma taça de champanhe do recém-casado, no hotel, que, se ficar
bêbado, poderá cair do andaime, mas, se beber, olhando com receio a neve que o sol iluminava, não terá tanto frio lá fora.
Como também entende que se tivesse dinheiro não teria caído do andaime porque o dinheiro ajuda a conservar o
equilíbrio. Sobretudo, acaba por se submeter a seu destino: prometera ao
santo da igreja que não mais iria beber, porém, finalmente, acaba por lhe dizer
soluçando: estou tão sozinho, tão
completamente sozinho e o vinho é tudo o que me resta e se o deixo, qualquer
dia vou cair do andaime.
Mais
do que um recurso narrativo, a constante ameaça de uma queda possível e
provável, que pode acontecer aos trabalhadores dos andaimes, se enriquece de
significados líricos – amor, ciúme, desengano, medo, solidão – e dos que fazem
pensar na fragilidade das vidas operárias que para subsistir se expõem ao sol,
aos ventos, às quedas.
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