domingo, 20 de julho de 2003

Pelos andaimes 2

     

            Havia um homem que trabalhava no alto de um andaime, pois era carpinteiro e trabalhando estava essa manhã quando sentiu uns violentos desejos de beber. Ramón Neira, personagem de El compadre, de Carlos Droguett, publicado pela Joaquín Moritz, do México, em 1967. Já no segundo parágrafo do romance, consta o que ele imagina irá acontecer um dia: cair, voando sobre a multidão. E o romancista chileno lhe segue os passos, indo pelas ruas, no ônibus, a cumprir o cotidiano itinerário quando termina o dia, chegando em casa onde a mãe  espiava o horizonte escurecido para ver se ele já vinha, tossindo com o cigarro entre os dentes. Lavando-se na torneira do pátio ou dormindo sob esse horrível teto de zinco, tão negro e sufocante, que era uma linha de fogo no verão. Sonhando. Divagando. Segue-lhe, também, os passos quando entra na igreja para propor a São Judas Tadeu que seja o padrinho de seu filho, já com oito anos e sem batizar. Embora a narrativa se apresente cheia de zonas de sombra, um recurso certamente caro a Carlos Droguett, ela não é cerceada pelo tempo ou pelos silêncios do personagem, pois é senhora de seu pensar, de seu sentir e de seus sonhos. O relato se faz desse presente, compreendido entre o momento em que o carpinteiro sente um violento desejo de beber e de sua última conversa com o santo, depois de um interregno em que passou um dia dormindo e outro bebendo no bar. Nele se inserem cenas fugazes do que acontece ao seu redor, alguns momentos de seu passado, seus monólogos diante da imagem de São Judas Tadeu. Pedaços de vida que seus olhos registram (os dois gringos conversando na calçada, a jovem mulher que reza na igreja, a criança, doente, chorando dentro de seu feio carrinho), ou que ouve (o diálogo dos carroceiros na madrugada, o dos homens na igreja, a confissão da velha, falando aos gritos). Lembranças que lhe afloram e dão conta de seu passado: a morte, o velório e o enterro do pai; a morte, o velório e o enterro de Alessandri, presidente do Chile, para ele o velhinho negro; seus amores com Yolanda, com quem se casa; o acidente que sofreu, caindo do andaime. Lembranças que retornam aos poucos, mesclando-se às divagações e aos sonhos, construindo a sua história de trabalhador pobre cuja vida transcorre nos andaimes. E se é no andaime que ele se sente seguro (Aí em cima estava bem, era feliz, era o amo, entre o vento e os ruídos distantes[...]) e onde vive suas horas mais felizes, é dele que pensa – e com lucidez e até imaginando estar doente por isso – um dia cair para a morte. Conjetura que lhe vem repetidas vezes à mente e se constitui um leit-motiv do relato. Ora a partir do fato concreto, o de ter caído, ora a partir do que ele presume poderá acontecer.

            Trabalhava na construção de um hotel sobre as rochas, na cordilheira. Era inverno, havia neve e ele sentia muito frio e a tosse não o soltava. As tábuas do andaime quebraram (noutro momento diz que resvalara nas tábuas olhando distraído os que patinavam no meio dos pinheiros) e ele escutou o companheiro gritar colega, irmão, não se mate. Um pouco antes tinha começado a lhe dizer algo e antes de receber a resposta já estava com o pé no vazio. Lembra que vinha caindo lento como a neve, como nela ficou enterrado, como o doutor o tratou e já enuncia as suas desconfianças em relação à mulher. Que estão presentes – justificadas ou oriundas de sua imaginação, turvada pela bebida – muitas outras vezes. Ele se pergunta por que o amor de Yolanda já não mais existe e sabe que sempre que desce do andaime já está bêbado e briguento e a deixa com medo. Daí conclui que, se cair do andaime, será uma boa solução para ela, acreditando – ainda que ela demonstre medo de que tal aconteça, ainda que lhe peça para não cair – que é o que deseja, o que há muito tem desejado.

            Por vezes, imagina que, ao cair, as pessoas, gritando, se afastarão, assustadas; que irá voar sobre a multidão antes de cair; que chegará ao céu, gritando com escândalo para entrar onde está fresco e não faz vento. Outras vezes, admite ter medo porque é preciso ter muito medo para não soltar as mãos e começar a flutuar para baixo, leve e rápido compreendendo que vai morrer arrebentado mas não sentindo dor nem angústia[...]. Também, não deixa de compreender quando recebe uma taça de champanhe do recém-casado, no hotel, que, se ficar bêbado, poderá cair do andaime, mas, se beber, olhando com receio a neve que o sol iluminava, não terá tanto frio lá fora. Como também entende que se tivesse dinheiro não teria caído do andaime porque o dinheiro ajuda a conservar o equilíbrio. Sobretudo, acaba por se submeter a seu destino: prometera ao santo da igreja que não mais iria beber, porém, finalmente, acaba por lhe dizer soluçando: estou tão sozinho, tão completamente sozinho e o vinho é tudo o que me resta e se o deixo, qualquer dia vou cair do andaime.
            Mais do que um recurso narrativo, a constante ameaça de uma queda possível e provável, que pode acontecer aos trabalhadores dos andaimes, se enriquece de significados líricos – amor, ciúme, desengano, medo, solidão – e dos que fazem pensar na fragilidade das vidas operárias que para subsistir se expõem ao sol, aos ventos, às quedas.

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