A
estrutura é circular. O texto, breve, de breves frases que ora austeras e
objetivas tem a fria expressão de um relatório, ora plenas de lirismo se
aproximam de um inesperado poético: “O Capacete Amarelo”, conto de Nilson Luiz
May, publicado no “Caderno de sábado” do Correio do Povo de Porto
Alegre, em 7 de julho de 1980. Uma narrativa em que o diálogo é quase um
monólogo, em que o personagem é apresentado pelos escassos dados constantes na
sua carteira de trabalho e mais adiante pelas suas qualidades, em que a ação se
inscreve no mais comezinho.
Duas
frases curtas introduzem o relato: O
cartaz anunciava: /Temos vaga p/servente.Logo, a voz do capataz,
imperativa, desrespeitosa no trato com o candidato à vaga oferecida cuja
identidade – Sebastião Rodrigues, vinte e seis anos, casado, pai de dois
filhos, analfabeto, assim como os três contratos anteriores de trabalho –
consta no documento que apresenta. E, voz taxativa, ao determinar a hora em que
ele deve se apresentar ao trabalho, no dia seguinte e o que deve fazer: pegar o
capacete amarelo e toca pro serviço. O parágrafo seguinte, avaro, diz apenas: Sebastião se apresentando. No seguinte, as ordens de preparar a massa para o
reboco fino e, junto com três baldes de água, levar para os homens lá em cima. Segue-se outro, em que se
enumeram suas virtudes, bom homem.
Obediente, trabalhador, honesto, cumpridor de seus deveres. Deveres que, há
sete dias, ele cumpre nesse subir os quatorze andares, levando baldes cheios de
massa e voltando com eles vazios pela caçamba-guincho,
elevador improvisado, feito de tábuas frágeis e mal postas e quase sem proteção
dos lados que, no seu contínuo subir e descer com a carga pesada, já mal
agüenta. Há uma exclamação, -Cuidado
servente!, seguida de considerações entre parênteses, (De capacete amarelo, o
servente. A mão de obra é abundante. Perde-se um, admite-se outro. Há capacete
amarelo sobrando: muita oferta, pouca procura.) antes do parágrafo, igualmente
avaro, Sebastião lutando. Antecede os
que dizem de sua luta e de seu fracasso num texto que se quer em prosa mas que
pelos seus recursos estilísticos, simples e sábios no emprego de pleonasmos
e gerúndios e pelo seu lirismo, se
constitui um poema: As pernas soltas, as
pernas frouxas, as pernas bambas, as pernas fracas do servente. Os braços
firmes, os braços presos, os braços segurando a vida numa tábua podre. As mãos
grandes, as mãos calejadas, as mãos suadas, as mãos doídas, as mãos cansadas./
As mãos afrouxando, as mãos se soltando, as mãos escorregando. O corpo frágil,
leve, voando. O corpo liberto, o espaço aumentando, a terra chamando a terra
chegando e aconchegando. Na luta,
primeiro, a menção à impotência das pernas (bambas,
frouxas, fracas); logo, à força dos braços que, além de
definidos pelos adjetivos firmes e presos, se completa na seqüência os braços segurando a vida numa tábua podre
onde é intensificado o sem valor e o maior valor presentes na oposição tábua podre/vida e a crueldade desse trágico destino que se mostra
ainda mais forte quando os adjetivos qualificam mãos (grandes, calejadas,
suadas, doídas, cansadas), oferecendo toda uma história de vida a passar pelo
trabalho duro que as tornam doídas e cansadas, vida que se acaba no derradeiro
e inútil esforço em que, igualmente, doídas e cansadas, serão vencidas pelo que
é determinado por leis que regem o viver social. Derrota que irá constar no parágrafo seguinte quando as mãos se
afrouxam, se soltam e escorregam porque não mais agüentam o peso do corpo. Que,
então, frágil, leve e liberto, voa. E no verbo voar, o eufemismo também
presente na menção ao espaço que aumenta entre o corpo e a caçamba-guincho e ao outro espaço que se aproxima: a terra chamando
e que será o aconchego. Nota de um espaço que remete ao tempo : aquele em que
dura a resistência para não cair e o tempo transcorrido entre o momento em que
as mãos se soltam e o corpo vai chegando ao chão. O que é eludido pelos
gerúndios que prolongam a ação (a terra chegando, a terra chamando) e pelo
emprego do verbo aconchegar, sugerindo repouso e paz e ternura que, finalmente,
lhe serão dados por essa mesma terra que o irá receber.
Na
verdade, o tempo que já passou, aquele em que Sebastião Rodrigues foi
contratado, os sete dias em que trabalha no edifício em construção, se anulam
diante desse tempo fatal e desse pequeno espaço a subir e a descer que lhe é
concedido como se anulam no anonimato os humanos que, distantes e impotentes,
foram testemunho (ou não) de seus últimos momentos: o observador que olha de
baixo para cima e constata a fragilidade do guindaste-guincho,
a voz que recomenda cuidado, e a criança que, de seu mundo lúdico, percebe o
capacete amarelo voando. Permanece a morte vil e sem sentido de um ser humano,
cuja vida, diante da poderosa entidade de quatorze andares, pouco significa e
cuja morte não impede a continuidade do já estabelecido. E as duas últimas
frases do conto, E o cartaz anunciando:
TEMOS VAGA PARA SERVENTE., repetem as primeiras, a compor o círculo, um
entre tantos, que aprisiona os homens.
Autor
de obras e numerosos artigos científicos e que já assinou, também, dezenas de
artigos de análise literária, além de contos e crônicas, do romance Terra da
boa Esperança (Tchê, 1989) e de Inquéritos em preto-e-branco (Mercado
Aberto, 1995) e Céus de Pindorama (WS, 2000), o médico Nilson Luiz May,
ao delinear o operário, preso na engrenagem de um trabalho feito de riscos e
que se repete à exaustão e é remunerado de um quase nada, se mostra, na
construção da narrativa, um real conhecedor do fazer literário que se agiganta
quando lhe sela o destino na poética síntese de seu vôo para a morte.


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