domingo, 13 de julho de 2003

Pelos andaimes 1


            A estrutura é circular. O texto, breve, de breves frases que ora austeras e objetivas tem a fria expressão de um relatório, ora plenas de lirismo se aproximam de um inesperado poético: “O Capacete Amarelo”, conto de Nilson Luiz May, publicado no “Caderno de sábado” do Correio do Povo de Porto Alegre, em 7 de julho de 1980. Uma narrativa em que o diálogo é quase um monólogo, em que o personagem é apresentado pelos escassos dados constantes na sua carteira de trabalho e mais adiante pelas suas qualidades, em que a ação se inscreve no mais comezinho.
            Duas frases curtas introduzem o relato: O cartaz anunciava: /Temos vaga p/servente.Logo, a voz do capataz, imperativa, desrespeitosa no trato com o candidato à vaga oferecida cuja identidade – Sebastião Rodrigues, vinte e seis anos, casado, pai de dois filhos, analfabeto, assim como os três contratos anteriores de trabalho – consta no documento que apresenta. E, voz taxativa, ao determinar a hora em que ele deve se apresentar ao trabalho, no dia seguinte e o que deve fazer: pegar o capacete amarelo e toca pro serviço.  O parágrafo seguinte, avaro, diz apenas: Sebastião se apresentando. No seguinte, as ordens de preparar a massa para o reboco fino e, junto com três baldes de água, levar para os homens lá em cima. Segue-se outro, em que se enumeram suas virtudes, bom homem. Obediente, trabalhador, honesto, cumpridor de seus deveres. Deveres que, há sete dias, ele cumpre nesse subir os quatorze andares, levando baldes cheios de massa e voltando com eles vazios pela caçamba-guincho, elevador improvisado, feito de tábuas frágeis e mal postas e quase sem proteção dos lados que, no seu contínuo subir e descer com a carga pesada, já mal agüenta. Há uma exclamação, -Cuidado servente!, seguida de considerações entre parênteses, (De capacete amarelo, o servente. A mão de obra é abundante. Perde-se um, admite-se outro. capacete amarelo sobrando: muita oferta, pouca procura.) antes do parágrafo, igualmente avaro, Sebastião lutando. Antecede os que dizem de sua luta e de seu fracasso num texto que se quer em prosa mas que pelos seus recursos estilísticos, simples e sábios no emprego de pleonasmos e  gerúndios e pelo seu lirismo, se constitui um poema: As pernas soltas, as pernas frouxas, as pernas bambas, as pernas fracas do servente. Os braços firmes, os braços presos, os braços segurando a vida numa tábua podre. As mãos grandes, as mãos calejadas, as mãos suadas, as mãos doídas, as mãos cansadas./ As mãos afrouxando, as mãos se soltando, as mãos escorregando. O corpo frágil, leve, voando. O corpo liberto, o espaço aumentando, a terra chamando a terra chegando e aconchegando. Na luta, primeiro, a menção à impotência das pernas (bambas, frouxas, fracas);  logo, à força dos braços que, além de definidos pelos adjetivos firmes e presos, se completa na seqüência os braços segurando a vida numa tábua podre onde é intensificado o sem valor e o maior valor presentes  na oposição tábua podre/vida e a crueldade desse trágico destino que se mostra ainda mais forte quando os adjetivos qualificam mãos (grandes, calejadas, suadas, doídas, cansadas), oferecendo toda uma história de vida a passar pelo trabalho duro que as tornam doídas e cansadas, vida que se acaba no derradeiro e inútil esforço em que, igualmente, doídas e cansadas, serão vencidas pelo que é determinado por leis que regem o viver social. Derrota que irá constar  no parágrafo seguinte quando as mãos se afrouxam, se soltam e escorregam porque não mais agüentam o peso do corpo. Que, então, frágil, leve e liberto, voa. E no verbo voar, o eufemismo também presente na menção ao espaço que aumenta entre o corpo e a caçamba-guincho e ao outro espaço que se aproxima: a terra chamando e que será o aconchego. Nota de um espaço que remete ao tempo : aquele em que dura a resistência para não cair e o tempo transcorrido entre o momento em que as mãos se soltam e o corpo vai chegando ao chão. O que é eludido pelos gerúndios que prolongam a ação (a terra chegando, a terra chamando) e pelo emprego do verbo aconchegar, sugerindo repouso e paz e ternura que, finalmente, lhe serão dados por essa mesma terra que o irá receber. 

            Na verdade, o tempo que já passou, aquele em que Sebastião Rodrigues foi contratado, os sete dias em que trabalha no edifício em construção, se anulam diante desse tempo fatal e desse pequeno espaço a subir e a descer que lhe é concedido como se anulam no anonimato os humanos que, distantes e impotentes, foram testemunho (ou não) de seus últimos momentos: o observador que olha de baixo para cima e constata a fragilidade do guindaste-guincho, a voz que recomenda cuidado, e a criança que, de seu mundo lúdico, percebe o capacete amarelo voando. Permanece a morte vil e sem sentido de um ser humano, cuja vida, diante da poderosa entidade de quatorze andares, pouco significa e cuja morte não impede a continuidade do já estabelecido. E as duas últimas frases do conto, E o cartaz anunciando: TEMOS VAGA PARA SERVENTE., repetem as primeiras, a compor o círculo, um entre tantos, que aprisiona os homens.

            Autor de obras e numerosos artigos científicos e que já assinou, também, dezenas de artigos de análise literária, além de contos e crônicas, do romance Terra da boa Esperança (Tchê, 1989) e de Inquéritos em preto-e-branco (Mercado Aberto, 1995) e Céus de Pindorama (WS, 2000), o médico Nilson Luiz May, ao delinear o operário, preso na engrenagem de um trabalho feito de riscos e que se repete à exaustão e é remunerado de um quase nada, se mostra, na construção da narrativa, um real conhecedor do fazer literário que se agiganta quando lhe sela o destino na poética síntese de seu vôo para a morte.


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