domingo, 15 de junho de 2003

O homem invisível

            É o primeiro poema de Odas elementales, “El hombre invisible”, cuja apresentação gráfica já mostra se constituir um material diferente daquele que compõe o livro: cantos dedicados às coisas comuns do cotidiano. Feito de uma longa estrofe de quase cinqüenta versos e iniciada com o pronome pessoal “eu” que declara rir e sorrir dos velhos poetas que sempre dizem “eu”, se revela como a poética de Pablo Neruda, poesia simples para homens simples que, no início da década de 50, ele proclamava. Em 1954, ano em que foi publicado o seu primeiro livro de odes, nas quais trabalhava desde 1952, ele disse a Emir Rodriguez Monegal (El viajero inmóvil, Buenos Aires, Losada, 1966) que desejava criar uma poesia de afirmação, de verdade e beleza, de fé na vida, de vitória e de confiança no futuro. Muito embora tais palavras se prendam a uma certa grandiloqüência que pode resultar, como geralmente soe acontecer, falsa ou enganosa, nos versos de “El hombre invisible” ele se refere ao dever do poeta: dar a todos os homens um testemunho sobre o mundo, pois o poeta tem olhos para ver os que lidam com fios elétricos, os que amassam o pão, cortam madeiras, transformam o ferro em fechadura, rasgam a terra, levam cartas, voltam do mar . E, nos poemas que seguem, ele canta tudo o que seja essencial para o homem: a claridade, a chuva, o mar, o fogo, o ar, o pão, o azeite, a alcachofra, o vinho, o galo, a migração dos pássaros. Também o que nele pode se abrigar: o amor, a inveja, a solidão, a esperança. Perseguindo tantos mundos e querendo tanto expressar o mundo dos homens, o cansaço o vence, o imobiliza para olhar as estrelas, perceber o inseto que passa, sentir a mulher amada e para, da alma, deixar emergir a onda de mistérios, / da infância, / o choro pelos cantos, / a adolescência triste. São as vivências de menino órfão e pobre que, tanto quanto o querer dar um sentido à vida e propagar a alegria, estão na origem de seu verso, que recusa a alienação da torre de marfim, para dizer da fome, do trabalho, da impossibilidade de poder pagar o aluguel, da greve e da repressão.

            Confessional, ingênuo nos seus recursos, “El hombre invisible”, como toda a poesia de Pablo Neruda se ilumina quando ele, no seu canto, se entrelaça ao destino dos homens.

            E o que não é raro nos seus versos, ele se autodefine. Nesse poema, ele está presente como o que segue pelas ruas sem misteriosas sombras, sem trevas, a ouvir confidências das pessoas com quem cruza e das coisas que pedem que ele  as cante. Como o que deseja é que todos vivam a sua vida e cantem com seu canto, corre e vê e escuta. Exatamente o contrário daquele que designa como velho poeta (antigo irmão, pobre irmão) que nas ruas nada vê (nem pescadores, nem livreiros, nem pedreiros) e que escreve sobre oceanos / que não conhece e pensa que é diferente de todo o mundo e se acha interessante. Traçado de um perfil, que lhe dá o ensejo de se servir da troça, ao esboçar-lhe, com os adjetivos: profundíssimo e tenebroso um modo de se sentir ou de sofrer porque seus sentimentos são marinhos. E que reafirma nos verbos que traduzem, prosaicamente, um ser e não ser desse poeta que se acredita tão grande / que não cabe em si mesmo, que se enreda e desenreda que se torce e se retorce. Uma troça que se completa nos inúmeros pleonasmos a reforçarem ausências nos poemas em que ninguém cai / de um andaime, / ninguém sofre, / ninguém ama, / [...] ninguém vive, [...] ninguém chora de fome / ou de ira, / ninguém sofre em seus versos / porque não pode pagar o aluguel. Ou,  nas fábricas / tampouco acontece nada, / nada acontece. Como reforçam o que é silenciado: chegam soldados, /  disparam / disparam contra o povo.

             Ainda que em menor número, também vai usar o pleonasmo para marcar o seu itinerário pelas ruas e uma vintena de adjetivos dos quais apenas se destacam geladas, qualificando constelações e submersa, qualificando prata. O que, na verdade, como a presença de uma única metáfora (a vida é uma caixa / cheia de cantos) e das quatro comparações (a vida repleta como o milho, de grãos, a vida corre / como todos os rios, a vida é uma luta / como um rio que avança, durmo como uma macieira), não lhe torna mais expressivo o verso. Tais recursos podem parecer demasiado corriqueiros, como, também, o uso de expressões que se opõem, como o veludo / duro/  da noite que treme (a maciez do pano em oposição à rigidez da noite que, ainda assim, treme); e daquelas que, justapostas, constituem enumerações de elementos oriundos de universos diferentes (orvalho, lua, diamantes, gotas de prata submersa ou cartas, soluços, beijos) um recurso muito próprio e frequente nos poemas de Pablo Neruda.

            Porém, seus anseios de transformar toda a dor do mundo inteiro em esperança; de almejar todas as alegrias / ainda as mais secretas para que sejam conhecidas; de possuir as lutas / de cada dia porque elas são o seu canto e fazem esquecer imperfeições. Entre os versos e os homens querem me dizer [...] porque lutam, / se morrem / porque morrem há aquele, muito breve: dizer-te. Isto é, não apenas a ele se dirige a voz dos homens, mas também a quem quiser ou puder escutá-la. O poeta, então, se concede acreditar que o seu canto reúne todos os homens. E se concede sonhar que, homem invisível, ele canta com todos os homens.

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