domingo, 29 de junho de 2003

Geografia da emoção


             Os versos de William Carlos Williams aparecem, em epigrafe, no livro, lhe inspiram o título, A serpente na grama (Porto Alegre, Mercado Aberto, 2001) e, também, num dos poemas A esfinge, em que Armindo Trevisan, contrariando os que afirmam que a poesia está morta, usa a expressão para defini-la como uma mulher refinada, semelhante à serpente que dá o seu bote na grama. Essa preocupação com o destino da poesia que, igualmente, expressa em relação ao romance, também se mostra no poema “Necrológio” quando indaga Quem disse que a poesia está morta? e se refere ao poeta grego Yánnis Ritsos e as suas palavras, pregando o poético (e o doloroso) de uma perna de madeira que deve preterir o vaso onde as begônias crescem em sacadas de chalés ao sol.  Indagações cujas respostas irrompem no poetar de Armindo Trevisan que se detém, por vezes, em pequenas coisas, em efêmeros momentos: na lembrança de Brecht que, doente, se alegra do canto dos melros depois de sua morte. Na visão da moça, vestida de vermelho, sentada sobre a grama / num campo onde pastavam três vacas gordas que o inunda de alta e luminosa doçura. E, nessa inesquecível xícara de café bebida no restaurante da Gare de Amiens, sobrepondo-se às imagens ofertadas pelo velho continente: A torre contra o céu, a fachada radiosa. Esboços breves no desenho de seus versos, construindo a geografia da emoção. Porque, embora assinale Assis, o Partenon, Chartres e Laon, espaços bem definidos, o elo que estabelece com eles não se prende à paisagem nem a monumentos ainda que, de Assis, lembre o azul do céu e não qualquer um, mas o da Úmbria a remeter aos afrescos de Giotto: do Partenon, as fustes, as cornijas; de Chartres, os cento e cinqüenta e dois vitrais de sua Catedral, dois mil metros quadrados de cor e de luz; de Laon, os blocos de pedra talhada à imagem da Virgem, dos santos, apóstolos e profetas. Emoção  revelada no detalhe, na relação inesperada com algo de muito simples que, no entanto, se aprofunda em expressões plenas de significados.

            Assim, se inicia o poema “Assis”, recomendando olhar  o céu para, logo, retornar à ingenuidade da imagem de um lago, ao pé das vacas; assim, ao sugerir, já no título, “Ao pé do Partenon” algo de imponente que se completa na menção a Fídias para finalizar com a singeleza de beber um cântaro de água, ouvindo as cigarras; assim, ao se interrogar sobre o que fazem em Laon os dezesseis bois que pastam nuvens e granizo. Ou por que tantos operários (de tão variadas nacionalidades) esqueceram os próprios nomes, pois apenas um registrou o seu em Rouen. Porém suas perguntas – ao leitor ou a si mesmo? – e o mistério de alguns versos conduzem a um universo mais denso. Porque lembram enigmas esses versos: Em Assis as próprias pedras têm remorsos, / e a alegria do vento é a de um cavalo que escoiceia, Ao pé do Partenon, em silêncio meditas / volumes musicais, fustes, cornijas,/e te embalas com a imóvel dança dos cavalos. Em Laon, as pedras sempre serão pedras, Ferozes pedras, / exibindo ao sol suas nudez paleolítica. Enigmas que a magia do poeta transforma em janelas de ver o mundo.

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domingo, 22 de junho de 2003

Perfis

            No ano de 2001, Armindo Trevisan publicou, pela Mercado Aberto, de Porto Alegre, A serpente na grama, coletânea de poemas que se abrigam sob a rubrica do poeta William Carlos Williams: Deixe a serpente esperar dentro da grama, que as frases sejam de palavras lentas e ligeiras, prontas para atacar, calmas na espera, insones. Poética reafirmada por Armindo Trevisan nos conselhos “A um jovem poeta” que encerra o livro e cujos dois primeiros versos, Não escrevas um poema enquanto teu coração / arde. Deixa que a emoção arrefeça, ditam o que Horacio Quiroga, também preconizara, no início do século, para o conto. O resultado dessa emoção, trabalhada pelo intelecto, serão esses versos lineares, austeros a cantar o amor, a desenhar espaços, a testemunhar o contemporâneo, a esboçar perfis. Poemas cujos títulos, quase sempre, remetem a quem é deles a razão. Ou numa evidente homenagem como “Três poemas a Freud”, “Seis poemas à memória de Brecht”, “Pequeno réquiem para Federico Fellini”, “Homenagem a Jorge Luis Borges”. Ou, simplesmente, apondo um nome ao poema: “Gramsci”, “Rothko”, “Ticiano”, “Rembrandt”, Mondriam”, “Pirandello”, “ Mahalia”. Algumas vezes, no entanto, o título genérico – “Poeta”, “Ensaio”, “O Arquiteto”, “Aniversário”,  “a Duquesa”, “Discurso sobre a dignidade do homem”, “Réquiem italiano”, “A rainha”, “Necrológio”, “ Salmo 14” –que somente terá sentido quando completado pelos versos que remetem  a Konstantinos Kaváfis, Montaigne, Gaudi, Yeats, Duquesa de Alba, Pico, Pier Paolo, Leonor de Aquitânia, Yánnis Ritsos, Pedro Almodóvar. Uma galeria de personagens que algum gesto ou vontade define: a grandeza de Ticiano que submete o Imperador a levantar-lhe o pincel do chão; a simplicidade de Freud a acariciar, diante de um jornalista, um arbusto; a vontade de Pirandello de ser exposto nu após a morte; a Duquesa de Alba a albergar em seus domínios a Monges cegos, órfãos / e uma matilha de cães vagabundos. Ou que são definidos por uma referência à tragédia que lhes marcou a vida: o corpo de Pier Paolo Pasolini sendo pisado pelas rodas do automóvel, depois de assassinado; a punhalada que feriu Yeats num bar de Londres; o câncer a consumir a vida de Konstantinos Kaváfis. Ou, ainda, pela arte de que são mestres: Mondrian a engaiolar a metrópole, Mahalia Jackson gemendo, chorando, rindo, / sofrendo, delirando, orando como uma embriagada, Rothko violando com um pé de cabra, / as portas do infinito.



            Homenagens que, por vezes, parecem presas à linguagem da lógica, quase sempre à da emoção, traduzindo uma relação do poeta – a desejar ir a Semmerling, nos Alpes Austríacos, onde esteve Freud ou conhecer Konstantinos Kaváfis, á luz de um ícone desfigurado, ou entrelaçar inquietudes, bebidas em Pedro Almodóvar e Fellini – num itinerário cujos meandros se fazem na riqueza de um visão de mundo, alimentada de cores, de formas, de sons, de idéias.

            Rembrandt é o artista das cores: dourados de coroas antigas, rubros / de auroras mortas, azuis / que fogem a distâncias montanhosas; / verdes, cujo segredo só as folhas / disfarçam junto a girassóis lacrados. Ticiano, o que bebeu com os olhos / a luz dourado do sol e Rothko, pintor das cores de penugem de pêssego. De Mondrian, é retido o traço que imobiliza, na tela, a dança; de Mahalia Jackson, o som de sua boca de onde jorram flechas e plumas; de Freud, esse entender palavras luminosas e insensatas; de Gramsci, o direito que pregou: o direito de estar de pé, e de mãos libertas / ocupar o cérebro com idéias de justiça.      

Armindo Trevisan interroga, se interroga. Talvez ou certamente, tenha dúvidas nas suas certezas. E, receptivo ao que as outras artes são passíveis de lhe oferecer, ele constrói um universo poético que se abre para outros universos,  profundamente individual e ricamente multifacetado

domingo, 15 de junho de 2003

O homem invisível

            É o primeiro poema de Odas elementales, “El hombre invisible”, cuja apresentação gráfica já mostra se constituir um material diferente daquele que compõe o livro: cantos dedicados às coisas comuns do cotidiano. Feito de uma longa estrofe de quase cinqüenta versos e iniciada com o pronome pessoal “eu” que declara rir e sorrir dos velhos poetas que sempre dizem “eu”, se revela como a poética de Pablo Neruda, poesia simples para homens simples que, no início da década de 50, ele proclamava. Em 1954, ano em que foi publicado o seu primeiro livro de odes, nas quais trabalhava desde 1952, ele disse a Emir Rodriguez Monegal (El viajero inmóvil, Buenos Aires, Losada, 1966) que desejava criar uma poesia de afirmação, de verdade e beleza, de fé na vida, de vitória e de confiança no futuro. Muito embora tais palavras se prendam a uma certa grandiloqüência que pode resultar, como geralmente soe acontecer, falsa ou enganosa, nos versos de “El hombre invisible” ele se refere ao dever do poeta: dar a todos os homens um testemunho sobre o mundo, pois o poeta tem olhos para ver os que lidam com fios elétricos, os que amassam o pão, cortam madeiras, transformam o ferro em fechadura, rasgam a terra, levam cartas, voltam do mar . E, nos poemas que seguem, ele canta tudo o que seja essencial para o homem: a claridade, a chuva, o mar, o fogo, o ar, o pão, o azeite, a alcachofra, o vinho, o galo, a migração dos pássaros. Também o que nele pode se abrigar: o amor, a inveja, a solidão, a esperança. Perseguindo tantos mundos e querendo tanto expressar o mundo dos homens, o cansaço o vence, o imobiliza para olhar as estrelas, perceber o inseto que passa, sentir a mulher amada e para, da alma, deixar emergir a onda de mistérios, / da infância, / o choro pelos cantos, / a adolescência triste. São as vivências de menino órfão e pobre que, tanto quanto o querer dar um sentido à vida e propagar a alegria, estão na origem de seu verso, que recusa a alienação da torre de marfim, para dizer da fome, do trabalho, da impossibilidade de poder pagar o aluguel, da greve e da repressão.

            Confessional, ingênuo nos seus recursos, “El hombre invisible”, como toda a poesia de Pablo Neruda se ilumina quando ele, no seu canto, se entrelaça ao destino dos homens.

            E o que não é raro nos seus versos, ele se autodefine. Nesse poema, ele está presente como o que segue pelas ruas sem misteriosas sombras, sem trevas, a ouvir confidências das pessoas com quem cruza e das coisas que pedem que ele  as cante. Como o que deseja é que todos vivam a sua vida e cantem com seu canto, corre e vê e escuta. Exatamente o contrário daquele que designa como velho poeta (antigo irmão, pobre irmão) que nas ruas nada vê (nem pescadores, nem livreiros, nem pedreiros) e que escreve sobre oceanos / que não conhece e pensa que é diferente de todo o mundo e se acha interessante. Traçado de um perfil, que lhe dá o ensejo de se servir da troça, ao esboçar-lhe, com os adjetivos: profundíssimo e tenebroso um modo de se sentir ou de sofrer porque seus sentimentos são marinhos. E que reafirma nos verbos que traduzem, prosaicamente, um ser e não ser desse poeta que se acredita tão grande / que não cabe em si mesmo, que se enreda e desenreda que se torce e se retorce. Uma troça que se completa nos inúmeros pleonasmos a reforçarem ausências nos poemas em que ninguém cai / de um andaime, / ninguém sofre, / ninguém ama, / [...] ninguém vive, [...] ninguém chora de fome / ou de ira, / ninguém sofre em seus versos / porque não pode pagar o aluguel. Ou,  nas fábricas / tampouco acontece nada, / nada acontece. Como reforçam o que é silenciado: chegam soldados, /  disparam / disparam contra o povo.

             Ainda que em menor número, também vai usar o pleonasmo para marcar o seu itinerário pelas ruas e uma vintena de adjetivos dos quais apenas se destacam geladas, qualificando constelações e submersa, qualificando prata. O que, na verdade, como a presença de uma única metáfora (a vida é uma caixa / cheia de cantos) e das quatro comparações (a vida repleta como o milho, de grãos, a vida corre / como todos os rios, a vida é uma luta / como um rio que avança, durmo como uma macieira), não lhe torna mais expressivo o verso. Tais recursos podem parecer demasiado corriqueiros, como, também, o uso de expressões que se opõem, como o veludo / duro/  da noite que treme (a maciez do pano em oposição à rigidez da noite que, ainda assim, treme); e daquelas que, justapostas, constituem enumerações de elementos oriundos de universos diferentes (orvalho, lua, diamantes, gotas de prata submersa ou cartas, soluços, beijos) um recurso muito próprio e frequente nos poemas de Pablo Neruda.

            Porém, seus anseios de transformar toda a dor do mundo inteiro em esperança; de almejar todas as alegrias / ainda as mais secretas para que sejam conhecidas; de possuir as lutas / de cada dia porque elas são o seu canto e fazem esquecer imperfeições. Entre os versos e os homens querem me dizer [...] porque lutam, / se morrem / porque morrem há aquele, muito breve: dizer-te. Isto é, não apenas a ele se dirige a voz dos homens, mas também a quem quiser ou puder escutá-la. O poeta, então, se concede acreditar que o seu canto reúne todos os homens. E se concede sonhar que, homem invisível, ele canta com todos os homens.

domingo, 8 de junho de 2003

A invenção na morte 4


São três vozes narrativas: a do menino, de sua mãe e do avô que, na pequena sala onde velam o corpo, contam de suas próprias vidas e de retalhos da vida desse morto que foi condenado – como Polinice da Antígona de Sófocles – a ficar insepulto.

            A primeira frase de La Hojarasca (Buenos Aires, Sudamericana,1973) é a do menino, tão pequeno, embora conste que tem quase onze anos, que a mãe ainda o veste com a roupa de domingo para ir ao velório, lhe amarra o cordão das botinas e, sentado na cadeira, seus pés não tocam o chão: Pela primeira vez eu vi um cadáver. Irá descrever-lhe o rosto e, assim, anunciar a causa da morte que só, mais adiante, será mencionada pela mãe, se referindo às palavras do pai – O doutor se enforcou esta madrugada – e pelo padre ao determinar que não seja enterrado no cemitério um homem que se enforcou. Logo, observa os homens trazendo o caixão, pois chegaram na casa quando o morto, todavia, jazia na cama, como o levantaram pelos ombros e pelos pés, um dos quais estava sem sapato, para colocá-lo dentro dele onde já haviam posto uma camada de cal. Também, como estava vestido e no caixão, parecendo mais a gosto, mais tranqüilo com o perfil suavizado e dando a impressão de já se sentir no lugar que, morto, lhe correspondia. E, ainda, que o avô foi recolhendo alguns objetos – um livro, o sapato que faltava – para por dentro do caixão antes de fechá-lo. Porém, o jeito de ser do morto, a sua chegada a Macondo para ficar, o repúdio que depois lhe votou a cidade e o compromisso assumido, por gratidão, de enterrá-lo, assim como as providências que tomou serão contados pelo avô, nesse tempo transcorrido entre a hora em que os três chegaram na casa e aquele em que a porta é aberta para a saída do féretro. Uma história feita de mistérios (nunca lhe souberam o nome, a nacionalidade e se efetivamente era médico), de reais ou fictícios desencontros amorosos. E de uma solidão tão grande que só poderia caber na morte. Que o povo de Macondo, a quem fraudara se recusando a atender-lhe os feridos, dizendo, sem mesmo abrir a porta, que os levassem a outro lugar porque havia esquecido tudo que sabia, deseja, sem piedade, condená-lo a apodrecer entre paredes.

            As vozes se alternam, permitem que se elevem as de Meme, de Adelaida e, apenas, nas últimas páginas do romance é que o menino irá completar o relato dos derradeiros trâmites para o enterro: por fim o consentimento da autoridade, o ato de abrir a porta da casa e de pregar o caixão com o martelo, ferindo a madeira por seis vezes consecutivas. E perceber na rua o pó brilhante e ardente, na calçada fronteira, os homens com os braços cruzados, no ar o canto do escorpião. Levantado pelos quatro homens, o ataúde, flutuando na claridade como se estivessem levando para enterrar um navio morto.

domingo, 1 de junho de 2003

A invenção na morte 3


            Em 1970, pela Editorial Universitária de Santiago do Chile, Mario Benedetti publicou seus Cuentos Completos, volume do qual fazem parte Esta mañana y otros cuentos (1949), Montevideanos (1959) e La muerte y otras sorpresas (1968). Duas décadas de produção, cujo itinerário foi sendo marcado pela busca do domínio narrativo e pela presença, reincidente, de alguns temas.

            Já em artigo escrito em 1951, Mario Benedetti – como lembra o crítico uruguaio Jorge Rufinelli, no Prólogo a Cuentos Completos – afirmava que o conto, pela sua brevidade e concentração deve ter a força de um impacto e que a sua linguagem deve conter, apenas, o essencial. O que não estava longe da estética anunciada por Edgar Poe e adaptada por Guy de Maupassant e que Mario Benedetti irá submeter aos temas que alimentam os seus contos: a solidão, a incomunicação, o deterioro das relações amorosas, a fatalidade, a morte.

            Em La muerte y otras sorpresas, volume constituído de dezenove contos, o tema da morte irá reger onze deles. Como ponto de partida do relato que se constrói a partir de uma perda e será, principalmente, revelador de sentimentos. Ou como inesperado desenlace. No primeiro caso estão “Todos los dias son domingo”, “Réquiem con tostadas” e “Datos para el viúdo”.

            “Todos los dias son domingo” tem como tema, sobretudo, a solidão e, apenas, no diálogo entre o viúvo e seu amigo é feita referência à perda: Hoje faz quatro meses. – Sim. – Vou ao cemitério. Mais adiante, o ritual da visita ao túmulo com as consabidas flores. Igualmente sobre a solidão e sobre a degradação de afetos é o conto “Réquiem com tostadas”, monólogo de um menino cuja mãe foi assassinada pelo marido o que é dito, somente, na parte final do relato, primeiro com o verbo matar, depois com a expressão mamãe está morta. Inicia-se com o velório, o marido a receber as condolências, depois, a visita  de um velho amigo da mulher a filosofar sobre a solidão e a refazer uma história de amores desencontrados, é o conto “Datos para el viúdo”.

            Em histórias que, aparentemente, não se relacionam com a morte, ela, no entanto, aparece nos contos “El cambiazo” e “El altillo” num imprevisto final. Um cantor popular, uma adolescente, sua inconteste e alienada admiradora, filha do coronel chefe de polícia, o prisioneiro a quem ele tortura se mostram em breves cenas que, embora contendo indícios para tal, não levam a prever a surpresa desse tiro que irá atingir o coronel e cuja razão está no verso que o cantor espalha pela cidade na sua canção e que prega a mudança, “el cambiazo” que dá o título ao conto. “El altillo” é o relato, em primeira pessoa, de um rapaz excepcional que fala sobre o desejo enorme que sempre teve de possuir uma água-furtada o que irá conseguir. Tem, já, vinte e três anos quando recebe a visita de um amigo de infância que o deixa desconfiado. Então, ele o mata, ação que é sugerida pela onomatopéia Paf e, logo, pelo eufemismo A luz está acesa, o foco de cem velas, mas tenho a certeza de que não incomoda Ignácio porque antes de descer eu disse perdão e lhe fechei os olhos.

            Igualmente com um inesperado desenlace, ainda que previsto pelo título, o conto “La muerte”. Na primeira frase, Convém que te prepares para o pior, a morte é anunciada e da possibilidade que aconteça se fará o relato: o espanto e a tristeza de se saber gravemente doente, possivelmente, condenado e sem esperanças. Porém, quando ela chega, de repente, não é mencionada no relato que diz desse foco de luz, enorme, cada vez menor, perto dos olhos do personagem que nunca mais irão se deslumbrar.

Diferente de todos os outros, a se afastar desse mundo real e cotidiano, no qual Mario Benedetti situa os seus contos, “Acaso irreparable” e “El outro yo”. Em “Acaso irreparable”, a narrativa se atém aos sucessivos adiamentos de um vôo, originando idas e vindas do personagem ao hotel para, na última linha, sugerir, pelas palavras de um jovem que recém desembarca e resulta ser o filho, já moço, do personagem, sobre quem se centra a narrativa, que já havia morrido há muito tempo atrás, num acidente aéreo. Algo semelhante se passa em “El outro yo”. Em Armando coexistem dois “eus”, um dos quais se suicida. Depois do primeiro impacto, tal morte resulta vantajosa para o outro. Contudo, ao sair de casa e se encontrar com os amigos, sua presença não é percebida por eles que passam, comentando: Pobre Armando. E pensar que parecia tão forte, tão saudável.

Entre esse narrar, onde o tema da morte é o “grande motivo” e entre os vários recursos que os constroem, nesses contos que, por vezes, alojam algum modismo, algum modelo, se revelam inigualáveis aprimoramentos. E o mais digno de nota é aquele que faz lembrar o nouveau roman e que torna “Para objetos solamente” uma pequena obra-prima: menos de quatro páginas impressas (entre as quais se intercalam outras duas, em letras manuscritas) em que, somente, são relacionados os objetos constantes de um quarto e, a partir deles, o perfil de seu habitante e a história amorosa que o impede de viver.

 O indício do que acontecera aparece nas primeiras linhas do conto e subordinado a uma suposição: se alguém apenas olhasse – abstraindo-se dos outros sentidos – para o interior do quarto e decidisse fazer um inventário do que nele existe, veria os móveis, revistas, um livro e um calendário com três anotações. Também os detalhes que revelam o nome do morador, sua profissão, seus gostos e leituras, seu relacionamento com Beatriz, que assina a dedicatória do retrato e, com a qual, como consta no calendário, ele tem um encontro marcado. E completando o inventário, somente perceber o pequeno fogão a gás, sobre o qual não há nada e cujos botões estão virados, um para a direita, outro para a esquerda. E o homem jovem, deitado, imóvel, sem o menor movimento de respiração. Logo, o pedaço de papel rasgado ao meio, manuscrito, parte de outro também jogado no chão, perto do armário. Sua leitura dirá dos sentimentos de Fernando, Beatriz e Manuel e da razão que levou um deles ao suicídio.

Um texto que na sua inusitada forma tipográfica, objetividade de linguagem, hábil e inopinado desfecho se mostra, também – e sua brevidade não é para isto um obstáculo – delicado esboço dos mistérios que pode conter o amor e seus sofrimentos.

Tais solidões, tais amores fanados, o inexplicável, a fatalidade são angústias que se expressam na procura que Mario Benedetti empreende para entender o que, talvez, seja o irremediável interrogante para os humanos.