domingo, 4 de maio de 2003

Gabriel García Márquez, crítico de cinema 4

            O filme mais parecido ao inferno é o título que introduz a nota sobre Hiroshima, que apareceu, em março de 1955, no jornal El Espectador de Bogotá (recolhido no livro Entre Cachacos, numa compilação feita por Jacques Gilard e publicado pela Bruguera, em 1982). Seu diretor, Kaneto Shindo, é considerado por Jean Fulard (Dictionnaire du cinema, Robert Laffont, 1982) como um cineasta de dois rostos – o neo-realista da vida cotidiana de agricultores pobres, em A ilha nua e o fantástico/sensual de Onibaba – cujo primeiro sucesso internacional foi devido As crianças de Hiroshima, de 1952. Gabriel García Márquez inicia seu comentário sobre o filme dizendo que as crianças de Hiroshima tinham ido para o campo caçar borboletas, num dia rotineiro em que, de súbito, se ouviu a vibração de um B-24 e logo a explosão e um terrível relâmpago. Um minuto depois, a cidade de Hiroshima se transformava num inferno. Mas, diz Gabriel García Márquez, é com simplicidade e discrição que Kaneto Shindo narra o que aconteceu e o faz com tal maestria com tal crueza e com tão apaixonado sentido da solidariedade que pode levar a crer não se tratar de uma reconstrução da catástrofe e sim de um documentário. No entanto, o que poderia ter sido uma nauseabunda sucessão de imagens repugnantes, a sensibilidade e o mágico sentido plástico dos realizadores mostram como um imenso poema de dor e de morte o que jamais havia sido visto: os escombros humanos que se movem sem direção, que fogem do nada para parte nenhuma, agonizando, apodrecendo vivos no meio de uma atmosfera que não é de pânico nem de dor. Sobretudo, o espanto, o terror, o desconcerto e a inocência das crianças. Uma obra grandiosa, monumental, diz Gabriel García Márquez, o mais convincente libelo contra a guerra e particularmente contra as guerras atômicas do futuro. Contrapondo a sua assertiva, ele menciona a do The New York Times, edição de 16 de janeiro. Sem dúvida curiosa, se não fosse extremamente clara nas suas pretendidas ocultas intenções: que o filme pode ser considerado uma dramatização do princípio da horrorosa idade das guerras atômicas, uma visão neo-realista do que aconteceu em Hiroshima, onde foi filmado, que nela participaram mais de cem mil pessoas e que foi financiada pelos mais humildes servidores públicos do Japão, uma vez que os grandes produtores dos Estados Unidos lhe negaram o patrocínio.

            Poucos meses antes, em setembro de 1954, numa nota referente ao cinema japonês que está entre as inúmeras outras publicadas na coluna “Dia a Dia” e a ele atribuídas, Gabriel García Márquez comenta o ter sido concedido a Akira Kurosawa e a Kenji Mizoguchi o Leão de Prata de Veneza. E observa que os cronistas europeus têm se referido com freqüência a Los niños de Hiroshima, filme que, por seu forte argumento contra a política de guerra norte-americana determinou a criação de uma barreira de interesses oposta à exibição desse filme na América. No parágrafo anterior comenta que os empresários do cinema poderiam, tendo em vista os fabulosos ganhos com o mau cinema, se dispor a correr riscos, de vez em quando, e oferecer filmes de qualidade. Conclui dizendo não acreditar que a censura política tenha algo que objetar a outros filmes japoneses que estão triunfando na Europa e que as desventuradas colônias da América Índia não temos o privilégio de conhecer.

            Não ter mencionado o título de Akira Kurosawa, que recebeu o Leão de Prata, tampouco Teinosuké Kinugasa, diretor de As portas do inferno (Palma de Ouro de Cannes, em 1954) – quando se refere ao insólito entusiasmo com que a crítica de Londres assinala a assombrosa utilização da cor, desse primeiro filme japonês em tecnicolor, exibido na Europa – e, sobretudo, considerar que a censura política não deve ter o que objetar aos filmes japoneses, em vez de rejeitar drasticamente a censura, pode levar a crer que esse texto, de setembro de 1954, que lhe é atribuído, não seja realmente dele. Porque, ainda que abstraindo as ausências de informação mencionadas, essa tolerância em relação à censura política não parece coerente com o perfil que hoje delineia Gabriel García Márquez, embora, na época em que escrevia para El Espectador, estivesse alheio às terríveis tensões políticas que se instalavam na Colômbia como o confessa nas suas memórias. Porém a referência ao cinema comercial versus cinema de qualidade, um dos tópicos que lhe orientou a crítica de cinema e o emprego de uma silepse, figura já anteriormente usada, apontam como sendo de sua autoria, também essas linhas. Como as que se lhe seguem no comentário “A la fama por las líneas blancas” em que trata da censura cinematográfica nos Estados Unidos, baseada num código inflexível a determinar que jamais o mal deve prevalecer sobre o bem, que o requisito indispensável para o personagem é a retidão moral e que o desenlace dos dramas devem estar em acorde com a felicidade burguesa. E para não perturbar essa felicidade, nem turvar-lhe a imagem, aceita, sem restrições, pelo mundo afora, resulta imprescindível para os Estados Unidos esconder – e assim, tolamente, procura dificultar a exibição do filme – o seu ato bélico contra uma população civil em que morreram centenas de pessoas e outras tantas ficaram marcadas para sempre. Mas, resulta impossível negar Hiroshima, depois dos minutos de silêncio que se seguiram à explosão da bomba atômica, lançada sobre ela no dia 6 de agosto de 1945 com o argumento supremo – no século XVII La Fontaine já constatava que a razão do mais forte é sempre a melhor – de assim dar fim à Segunda Guerra Mundial.

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