O filme mais parecido
ao inferno é o título que introduz a nota sobre Hiroshima, que apareceu, em março de 1955, no jornal El Espectador
de Bogotá (recolhido no livro Entre
Cachacos, numa compilação feita por Jacques Gilard e publicado pela
Bruguera, em 1982). Seu diretor, Kaneto Shindo, é considerado por Jean Fulard (Dictionnaire du cinema, Robert Laffont,
1982) como um cineasta de dois rostos – o neo-realista da vida cotidiana de
agricultores pobres, em A ilha nua e
o fantástico/sensual de Onibaba –
cujo primeiro sucesso internacional foi devido As crianças de Hiroshima, de 1952. Gabriel García Márquez inicia
seu comentário sobre o filme dizendo que as crianças de Hiroshima tinham ido
para o campo caçar borboletas, num dia rotineiro em que, de súbito, se ouviu a
vibração de um B-24 e logo a explosão e um terrível relâmpago. Um minuto
depois, a cidade de Hiroshima se transformava num inferno. Mas, diz Gabriel
García Márquez, é com simplicidade e discrição que Kaneto Shindo narra o que
aconteceu e o faz com tal maestria com tal crueza e com tão apaixonado
sentido da solidariedade que pode levar a crer não se tratar de uma reconstrução
da catástrofe e sim de um documentário. No entanto, o que poderia ter sido uma nauseabunda sucessão de imagens
repugnantes, a sensibilidade e o mágico
sentido plástico dos realizadores
mostram como um imenso poema de dor e de
morte o que jamais havia sido visto: os
escombros humanos que se movem sem direção, que fogem do nada para parte
nenhuma, agonizando, apodrecendo vivos no meio de uma atmosfera que não é de
pânico nem de dor. Sobretudo, o espanto, o terror, o desconcerto e a
inocência das crianças. Uma obra grandiosa,
monumental, diz Gabriel García Márquez,
o mais convincente libelo contra a guerra
e particularmente contra as guerras
atômicas do futuro. Contrapondo a sua assertiva, ele menciona a do The New
York Times, edição de 16 de janeiro. Sem dúvida curiosa, se não fosse
extremamente clara nas suas pretendidas ocultas intenções: que o filme pode ser
considerado uma dramatização do princípio da horrorosa idade das guerras
atômicas, uma visão neo-realista do que aconteceu em Hiroshima, onde foi
filmado, que nela participaram mais de cem mil pessoas e que foi financiada
pelos mais humildes servidores públicos do Japão, uma vez que os grandes
produtores dos Estados Unidos lhe negaram o patrocínio.
Poucos
meses antes, em setembro de 1954, numa nota referente ao cinema japonês que
está entre as inúmeras outras publicadas na coluna “Dia a Dia” e a ele
atribuídas, Gabriel García Márquez comenta o ter sido concedido a Akira
Kurosawa e a Kenji Mizoguchi o Leão de Prata de Veneza. E observa que os
cronistas europeus têm se referido com freqüência a Los niños de Hiroshima, filme que, por seu forte argumento contra a política de guerra norte-americana
determinou a criação de uma barreira de interesses oposta à exibição desse
filme na América. No parágrafo anterior comenta que os empresários do cinema
poderiam, tendo em vista os fabulosos
ganhos com o mau cinema, se dispor a
correr riscos, de vez em quando, e oferecer filmes de qualidade. Conclui
dizendo não acreditar que a censura política
tenha algo que objetar a outros filmes japoneses que estão triunfando na Europa
e que as desventuradas colônias da América Índia não temos o privilégio de
conhecer.
Não
ter mencionado o título de Akira Kurosawa, que recebeu o Leão de Prata, tampouco
Teinosuké Kinugasa, diretor de As portas
do inferno (Palma de Ouro de Cannes, em 1954) – quando se refere ao insólito entusiasmo com que a crítica de
Londres assinala a assombrosa utilização da cor, desse primeiro filme
japonês em tecnicolor, exibido na Europa – e, sobretudo, considerar que a censura política não deve ter o que
objetar aos filmes japoneses, em vez de rejeitar drasticamente a censura, pode
levar a crer que esse texto, de setembro de 1954, que lhe é atribuído, não seja
realmente dele. Porque, ainda que abstraindo as ausências de informação
mencionadas, essa tolerância em relação à censura
política não parece coerente com o perfil que hoje delineia Gabriel García
Márquez, embora, na época em que escrevia para El Espectador, estivesse alheio às terríveis tensões políticas que se instalavam na Colômbia como o
confessa nas suas memórias. Porém a referência ao cinema comercial versus
cinema de qualidade, um dos tópicos que lhe orientou a crítica de cinema e o
emprego de uma silepse, figura já anteriormente usada, apontam como sendo de
sua autoria, também essas linhas. Como as que se lhe seguem no comentário “A la
fama por las líneas blancas” em que trata da censura cinematográfica nos
Estados Unidos, baseada num código inflexível a determinar que jamais o mal
deve prevalecer sobre o bem, que o requisito indispensável para o personagem é
a retidão moral e que o desenlace dos dramas devem estar em acorde com a
felicidade burguesa. E para não perturbar essa felicidade, nem turvar-lhe a imagem,
aceita, sem restrições, pelo mundo afora, resulta imprescindível para os
Estados Unidos esconder – e assim, tolamente, procura dificultar a exibição do
filme – o seu ato bélico contra uma população civil em que morreram centenas de
pessoas e outras tantas ficaram marcadas para sempre. Mas, resulta impossível
negar Hiroshima, depois dos minutos de silêncio que se seguiram à explosão da
bomba atômica, lançada sobre ela no dia 6 de agosto de 1945 com o argumento
supremo – no século XVII La Fontaine já constatava que a razão do mais forte é sempre a melhor – de assim dar fim à Segunda
Guerra Mundial.
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