domingo, 18 de maio de 2003

A invenção na morte 1


            La Amortajada foi publicado em 1938, quando Maria Luiza Bombal tinha 28 anos. Breve romance, como aquele que o antecedeu, em 1935, La última niebla e La historia de Maria Griselda, de 1946 e mais alguns contos é toda a sua produção literária da qual, Alone, crítico chileno seu compatriota, diz ter bastado para que os mais rigorosos a estudem não sem assombro. La Amortajada é, sem dúvida, um instigante texto ficcional. Embora o título da obra “A amortalhada”, algo já esteja a anunciar, certamente surpreende esse entrelaçar da verossimilhança com a irrealidade, essa abolição de fronteiras entre os momentos vividos entre os vivos e aquele vivido na morte.
            O relato da La Amortajada se inicia com a voz de um narrador tradicional, provido de todo o poder a lhe permitir conhecer os sentimentos da mulher que está sendo velada e vê e percebe o que se passa. Um narrador que irá lhe ceder a voz para que relembre, a partir da chegada do homem que amou e a quem pertenceu, a sua primeira paixão. Está ali, de pé, olhando para ela, numa presença que anula, de repente, os longos anos baldios, as horas, os dias, que o destino interpôs entre eles dois, lento, escuro, voraz. Ela lhe dirige a palavra que ele não escuta, refazendo o percurso da história que viveram quando crianças e adolescentes e amorosos e que, abandonada, viveu sozinha. O narrador onisciente, conhecedor de seus sentimentos do passado e dos que ela descobre, estando morta, retoma o relato. E o torna a retomar, muitas vezes, para dizer da presença de seu pai levando a momentos do passado distante quando lhe perguntava se, todavia, lembrava da mãe morta; e da irmã; e do filho que destrói no fogo da vela o retrato da mulher amada para não ter que dividir a sua imagem; de Fernando, o amigo de quem é confidente e objeto de amor; da presença do marido e, por fim, do padre que a conhecera de pequena e lhe faz a oração de adeus. E sempre lhe concede a palavra que ela dirige à irmã, ao marido, à filha para completar, sinuosamente, um relato que se tece entre o momento em que, no entardecer, entreabriu os olhos e aquele em que se percebe sozinha, podendo, por fim descansar, morrer. E no sábio arquitetar do tempo entre os seus passados e o exíguo presente, prolongando o que resta, ainda, para a amortalhada: entender e descobrir e abandonar-se aos desígnios do ritual da morte.

            Quando o homem que a iniciara no amor e a abandonara, ao olhar para ela, morta, revela no mesmo rápido pestanejar que fazia em criança em momentos de emoção, o que ela ignorava: que no coração e nos sentidos daquele homem ela tinha fincado raízes; que jamais, ainda que amiúde acreditasse, estivera inteiramente só; que jamais, ainda que amiúde o pensasse fora realmente esquecida. E se pergunta: É preciso morrer para saber?

            E irá, ainda, saber o que somente é dado a conhecer aos que já não existem. Assim, o que sofreu o filho com os retratos da mulher (não entrega ela um pouco de sua beleza em cada retrato? Não existe em cada um deles uma possibilidade de comunicação, efígies por onde ela se evade apesar de sua vigilância. Igualmente, compreende que a Fernando, que muito a amou e sem esperança, bastou olhar para ela uns instantes para entender que já não era a mulher desejada, mas uma estátua de cera. Quando o caixão é levado e passa pelos lugares conhecidos – onde se enrodilhava para tomar sol, o rosto inclinado contra o último degrau da escada, cujas pedras espalhavam, se molhadas, o cheiro particular que exalam os quadro negros logo depois que as tarefas foram apagadas com a esponja – descobre o quanto as coisas podem significar. Percebe, pela primeira vez, que a folhagem dos choupos tem ondulação e reflexos de água agitada e se enternece ao constatar que os troncos dos eucaliptos perdem a casca, o que nunca ela havia notado, deixando ver uma nudez azul e leitosa. Um mundo novo se lhe revela a provocar desejos. O de apertar, fazer ranger sob o pé, as agulhas de pinheiros, esparramadas no chão; o de ser abandonada, a céu aberto, no coração dos pântanos para escutar até o amanhecer o canto que as rãs fabricam de água e lua, na garganta e ouvir o crepitar aveludado das mil borbulhas do limo. E, aguçando o ouvido, perceber ainda o silvo sinistro com que, na estrada distante, se lamentam os fios elétricos; e distinguir, antes da aurora, os primeiros adejos dos flamengos entre os canaviais.

Como sucedeu desde o momento em que entreabriu os olhos e, morta, se viu rodeada por todos e depois, quando a levantam do leito com infinitas precauções a acomodam na longa caixa de madeira; e durante o trajeto, percorrendo a casa, o jardim, o bosque no cortejo que a leva para enterrar, esteve sempre livre para olhar e para sentir da cripta, quebrado já o convívio com os humanos, está pronta para a vida em que irá renascer. Sente, nascidas de seu corpo uma infinidade de raízes afundar-se, se espalhar na terra como uma poderosa teia de aranha pela qual subia, tremendo até ela, a constante palpitação do universo.

Inesperada, nas últimas linhas do romance, a presença do narrador, agora na assunção de uma primeira pessoa, para jurar que a amortalhada, sozinha, podia, por fim, descansar, morrer. Como se, apenas então, precisasse de um apoio para dizer do inacreditável que, poético e insólito, povoa o seu relato

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