A
primeira frase, O homem e seu machado
acabavam de limpar a quinta rua do bananal, contém os três elementos que
irão compor a narrativa. Breve, concisa, despojada a seguir o que preconizava –
ainda que o seu ideário estético fosse posterior ao momento de criação
literária, como o notou o crítico José Enrique Etcheverry Stirling – Horacio
Quiroga, um dos mestres do gênero. “El hombre muerto” obedece, também, às
regras das três unidades da tragédia grega que o teatro clássico francês
adotou: num só lugar, a um só tempo, um só fato aconteça.
A
narrativa começa com o homem, o personagem, que assim é identificado, olhando,
satisfeito, para o trabalho que estivera fazendo e que pouco lhe falta para
concluir. Então, atravessa a cerca para descansar sobre o capim. Porém, ao
levantar o arame farpado, escorrega e o machado que tinha na mão, se lhe
encrava no ventre. Deitado, tenta movimentar, em vão, a cabeça, conseguindo ver
só o cabo da ferramenta e a metade de sua folha. Calculando a extensão e a
trajetória do machado dentro de seu corpo, adquiriu fria, matemática e inexorável a certeza de que havia chegado ao término de sua existência. É esse pouco tempo que
lhe resta que irá se constituir o relato. Feito do cenário: o bananal com suas largas folhas nuas ao sol, o teto
vermelho da casa, lá longe, à esquerda o mato, o capim curto, o pedregulho vulcânico, os ninhos de
formigas. Cenário que se completa com o sol a pino, um sol de fogo, origem da luz
excessiva, com as sombras amareladas, com o ar brilhante e solitário. Feito do fato: um
simples resvalar sobre o pedaço de casca da cerca é suficiente para ceifar a
vida do homem. Caído, ferido de morte, ele tem consciência de que fria, fatal e iniludivelmente vai morrer.
Mas, como que se esquece e ainda pensa que deve trocar os moirões da cerca,
numa espécie de esperança diante da irrealidade que significa estar sendo
arrancado da vida, quando a vida, ao seu redor, continua a mesma, exatamente como sempre; e diante do
inverossímil desse dia tão igual aos outros na ida ao trabalho, na presença de
seu cavalo, ali perto, naquilo que vê (a paisagem a seu redor), no que percebe
(o menino que passa assobiando), no que espera (a vinda da sua mulher com os
dois filhos a buscá-lo para o almoço). Feito do tempo: um passado para dizer de
sua história: os cinco meses consecutivos em que fez o potreiro, os dez anos de
trabalho no mato, os meios-dias em que voltava, cansado, para casa. E um
presente bem marcado pelas expressões onze
e meia, um quarto para o meio dia,
meio dia, dois segundos, dois minutos, vinte minutos, o tempo em que ele está morrendo. E principalmente,
marcado pelo advérbio já, na última
linha do relato em que a sequência já
descansou, se liga às expressões está
morrendo, muito cansado e ao título do conto. Precedendo-a, o parágrafo
anterior em que ele acredita dispor de sua mente, acredita poder abandonar o
corpo e ver o que ele construiu, a paisagem de sempre e, mais longe, o bananal
e o potreiro e perto de um moirão descascado, lançado sobre o lado direito e as pernas encolhidas, exatamente como
todos os dias, pode ver a si mesmo, como
um pequeno vulto assoleado sobre o capim – descansando, porque está muito
cansado.... A seguir, o relato se detém no cavalo e lhe acompanha o olhar
para o homem deitado, e o receio que tem de avançar pelo bananal. Receio que as
vozes, já próximas, fazem desaparecer, decidindo-o a passar entre o moirão e o
homem deitado que já descansou.
É
o epílogo do conto a confirmar, eufemisticamente, o anunciado nesse poder vagar
fora de si mesmo como um prolongamento da existência que lhe fora grata, quando
construía o mundo a sua volta (fazendo do mato um potreiro, plantando o pasto,
levantando as cercas e fundando uma família), mas cujo fim já fora, e sem
retorno, selado.
Amparado no
tema da morte, reconhecidamente, da predileção de Horacio Quiroga, “El hombre
muerto”, na austera habilidade de seus recursos formais e na sutileza com que
anuncia a aproximação do trágico desfecho, se mostra um momento perfeito da
Literatura do Continente. Que se universaliza nesse personagem sem nome,
consignado pelo fado irreparável ao qual se submete, também sem remissão, cada
ser humano.

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