domingo, 23 de março de 2003

Diálogos didáticos na ficção do Continente.Érico Veríssimo


            É um recurso que aparece e torna a aparecer nos romances de Érico Veríssimo: diálogos em que personagens – como no primeiro volume de O Arquipélago – discutem o fazer literário, idiosincrasias próprias do gaúcho, situações políticas do Rio Grande do Sul, o processo histórico brasileiro, questões ideológicas. São inúmeros, se travam entre dois ou mais interlocutores e se estruturam para expressar-lhes as convicções.

            No capítulo “Reunião de família II”, Rodrigo Cambará convalesce de um edema agudo de pulmão. Tem a sua volta, Floriano, o filho mais velho, literato em busca de seu caminho, Roque Bandeira, velho amigo que se diz anarquista, um sobrinho, Irmão Zeca, religioso mariano e Eduardo, seu outro filho, militante do Partido Comunista. São quase dez horas da noite e um aguaceiro interrompe o comício político que se realiza na praça. No quarto, todos fumam, também o doente e os discursos que lhe chegavam a meias geram comentários que levam a falar de ditadores e regimes de força. Para não deixar a conversa esmorecer, Rodrigo Cambará provoca Floriano: que explique da necessidade que tem o povo de governos fortes. Eu acho [ele responde] que para a maioria das pessoas a liberdade, com a responsabilidade que envolve, é um fardo excessivamente pesado. Daí a necessidade que tem o homem comum de refugiar-se no seio dum grupo humano ou colocar-se sob a tutela dum chefe autoritário que, se lhe tira certas liberdades civis, lhe dá, em troca, a sensação de segurança e proteção de que ele tanto precisa. Convicção reafirmada por Roque Bandeira, a lembrar o exemplo dos Estados Unidos onde, segundo ele, se inventou o oitavo pecado mortal: o de desobedecer ao código do grupo, o de não pensar, sentir ou agir de acordo com os padrões estabelecidos pela comunidade, o de não aceitar a estandardização das idéias, dos hábitos, da arte, da literatura, dos gestos sociais, dos bens de consumo... O inconformado passa a ser marginal, um elemento subversivo, uma ameaça à ordem social. Duas réplicas que serão o ponto de partida do entrecruzar de idéias, expostas numa dezena de páginas, em que os personagens serão fiéis a si mesmos ao defenderem seus  pontos de vista. Rodrigo Cambará, provocante, mas incapaz de acompanhar uma exposição de idéias mais profunda, procura conduzir o assunto para o lado que lhe interessa e que ele melhor conhece: o Rio Grande do Sul. Embora médico e com longa experiência na vida pública, o temperamento, a  idade e seus achaques, o mostram imaturo nas suas contínuas exigências – quer que lhe acendam o cigarro, que lhe sirvam cerveja, que tragam o cafezinho ou um lenço molhado em água de colônia, um pouco de sal de frutas – e dominador nas frases indelicadas com que interrompe o interlocutor com o qual não concorda – Acabas de dizer a maior besteira de tua vida, meu filho, Não digas asneiras!, É melhor calares a boca, Vai dormir, rapaz!, Não me venhas com asneira. O que estará coerente com a sua visão de mundo, conservadora e teimosa: sempre haverá comandantes e comandados, induzindo-o a acreditar que pela primeira vez na nossa História encontramos um líder, na figura de Getúlio Vargas[...], e que o gaúcho nunca abdicou de seu código de honra, que existe uma grande beleza nas lealdades desinteressadas desses amigos, peões, capangas, criados que votavam e engrossavam os exércitos em tempo de revolução. No entanto, não logra impedir a expressão de Floriano, Eduardo, Irmão Zeca e Roque Bandeira, delineando suas verdade e suas dúvidas, numa sucessão de assertivas sobre a figura do ditador, os próceres gaúchos, o marxismo, o papel da Igreja no Estado Novo, a condição humana e a responsabilidade do escritor. Gestos, maneiras de dizer, de olhar expõem os perfis, ordenam o ritmo da narrativa: Roque Bandeira consulta o relógio, ergue a mão gorda com o indicador enristado na direção do interlocutor; Irmão Zeca encolhe os ombros, caminha de um lado para o outro, apalpando o crucifixo que traz pendurado  no pescoço; Floriano enfia as mãos nos bolsos das calças e dá uns passos pelo quarto; Eduardo boceja e atira fora o toco do cigarro. Eles se expressam ou com voz sonolenta, ou num murmúrio desdenhoso, ou a fazer um esforço para falar com naturalidade. E com um olhar. Divertido ou cúmplice no piscar dos olhos, o de Roque Bandeira; silencioso, dirigido para o assoalho ou para as próprias botinas, o do Irmão Zeca; lançado a seu redor, admirando-se que os demais o escutem sem protestos, o de Floriano. E, desafiante, o de Eduardo. Agressivos, trocistas ou de impaciência os sentimentos afloram no jogo de palavras onde permeiam o ceticismo de Roque Bandeira, a crença religiosa, a fé no Partido e as incertezas quanto aos deveres do escritor cuja síntese é feita por Floriano: Aqui estou [...] diante de quatro amigos, nenhum dos quais parece aceitar ou compreender minha posição. O Zeca me quer fazer crer no seu Deus barbudo que distribui prêmios e castigos e cujos preceitos (que não sei como foram dados a conhecer ao homem) devemos obedecer. Por outro lado, o Edu me assegura que a única maneira lógica e decente da gente participar na luta social é sentando praça no seu Partido. Em suma, quer que eu troque o que ele chama de torre de Marfim pela Torre de Ferro do PC. Meu pai acha que a panacéia para todos os males é a volta do Dr. Getúlio ao poder, isto é, o Estado paternalista. E ali o nosso Bandeira, com quem tenho algumas afinidades intelectuais, me considera um  toureiro tímido, desses incapazes de enfrentar o touro no momento de la verdad.... De fato, cada um se ancora na sua verdade e quando Eduardo questiona o sistema vigente e as pretensas boas consciências – Até que ponto vocês os liberais, os democratas, os católicos, os conservadores etc. ...etc... respeitam mesmo a pessoa humana? Permitindo que três quartas partes da população do mundo viva num plano mais animal que humano? Queimando café e trigo por uma questão de preços quando há fome nos cinco continentes da terra? Deixando que continue a exploração do homem pelo homem, a usura, a prostituição... enfim, todos esses cancros da ordem capitalista? – o pai já está pensando em outra coisa, Roque Bandeira parece mergulhar numa modorra que o impede de reagir, o Irmão Zeca silencia e Floriano guarda silêncio.

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