domingo, 16 de março de 2003

Diálogos didáticos na ficção do Continente. Augusto Roa Bastos


            Félix Moral é paraguaio e vive no exílio, na França. Jimena Tarsis já nasceu no exílio, filha de espanhóis que a Guerra da Espanha transformou em refugiados, acolhidos na França. Estão juntos, unidos pelas afinidades - o impossível retorno às origens - e pelos sentimentos que sentem um pelo outro, mas, também, submetidos aqueles que resultam de suas experiências anteriores, excessivamente dolorosas. Experiências que embora sejam ambas resultados de uma tirania originam, haja visto as condições de vida e  temperamentos, uma visão de mundo que pouco tem em comum. Ainda que Jimena Tarsis sempre estivesse disposta a escutar as divagações de seu companheiro sobre a  terra natal, há temas que ele não pode compartilhar: a reflexão sobre esse ato extremo final que irá justificar sua existência. Pois acredita que, ainda sendo cego, surdo e mudo, há momentos em que tudo o que foi e é o ser humano pode se resumir num ato supremo de resgate pra si mesmo e para os outros.Ponto de partida para um longo entrecruzar de ideias, não somente a propósito desse ato de resgate como sobre a execução de um tirano. Jimena não acredita que simplesmente a sorte determine um resgate, no seu entender, sempre improvável e sim que não são as pessoas que escolhem a situação limite que as levará à ação mas é a situação limite, quando se apresenta, que irá escolher o executante da ação. E o questiona se ele se acha capaz, contaminado pela ideia de redenção, absorvida na sua casa cheia de padres e de freiras, de um ato supremo e se considera ser ele  o   escolhido. Porque o desejo de Félix Moral é dar morte ao tirano, um homem nefasto e medíocre cujo poder absoluto só se pode forjar sobre a completa fraqueza dos oprimidos.  Justifica esse querer obsessivo – não saber como agir e desejar sabê-lo – e admite estar condenado ao fracasso, mas, também, se sente convicto de que em seu país sitiado e massacrado é preciso que se produza um ato único e não repetido para liberar um indivíduo ou um povo do poder inumano que o subjuga. Estuda os planos de quase uma centena de conspirações e atentados fracassados e conclui que o principal erro de todos eles foi o de empregar métodos rotineiros: balas, granadas, túneis subterrâneos sob o palácio de governo ou sob o itinerário cotidiano, carro bomba, franco-atiradores de elite. E foram muitos e nem todos os tornados públicos para não oferecer para a escura multidão que espera no fundo de seu medo essa possibilidade salvadora. Para Félix Moral dar fim, o quanto antes, ao tirano a quem considera um verdadeiro criminoso de guerra, é uma imperiosa necessidade pois além de ter instituído a ordem superior, o único estatuto que ele permite e que funciona sob o seu controle pessoal, acrescenta ao já conhecido método, dividir para reinar algo  mais poderoso: corromper e prostituir para amolecer a sociedade. Assim a converte  em rameira complacente e servil que dificulta o aparecimento de um verdadeiro líder revolucionário. Ele deve surgir do povo, diz Félix Moral ainda que o povo, na sua grande maioria, esteja submetido ao tirano pelas prebendas miseráveis ou esmagados pelo terror da repressão, das torturas e o genocídio sistematizado. É o que ele responde a sua interlocutora que duvida da existência de um tirano assim no Paraguai e a lembrar que o medo é a única forma de consciência pública existente no pais, como o foi na Espanha durante a ditadura franquista. Diante da reafirmação convicta de que,então, é preciso liquidar o tirano, enunciada por Félix Moral, ela responde que há coisas mais importantes do que apunhalar ou enforcar o tirano e acrescenta: os tiranos morrem e os povos sobrevivem, lembrando que Franco não pode liquidar com a Espanha. Félix Moral se apoia, então, no conceito da  justiça que deve ser posta em prática e nos fatos que a exigem: a repressão, o genocídio, os crimes de lesa humanidade do nazismo e do fascismo. E nas leis que a tornam possível: a ciência jurídica, o código penal, os tribunais especiais. Conceitos e práticas que para Jimena são utópicos, armadilhas, jogos de palavras, pois, no seu entender, não existe a menor possibilidade de julgar nem o indivíduo, nem a sociedade, nem o universo, nem a si próprio. Pergunta-se e pergunta: quem iria julgar? Quem iria aplicar a justiça?

            Félix Moral não se deixa convencer e irá achar um meio, não convencional, para executar o tirano. Porém, no diálogo mantido com Jimena, embora sonhando com uma justiça  precisa e  inadiável, se permite conservar uma distancia que o leva a um inesperado auto julgamento. Ao enunciar seus axiomas – Um líder revolucionário autêntico surge da massa do povo; O monstro deve morrer enforcado pelo povo e arrastado pelas ruas...; Há uma justiça imanente e outra  prática, imediata, que deve ser executada para o bem de todos; Há uma situação limite sem retorno possível em que tudo se joga, a cara ou coroa, num  relâmpago; Estou acostumando meu olhar ao sangue, estou aprendendo  a ver...a procurar a maneira de fazê-lo – ou a fase lhe parece de um ridículo insuportável, ou sente que está recuperando o tom falsamente rebelde e patrioteiro dos primeiros anos de exílio, ou percebe que está a teorizar com certo automatismo, ou define sua frase como ribombante e trivial ou se sente ridículo recitando o típico versículo progre do intelectual comprometido. É quando Félix Moral, o narrador de El Fiscal (Sudamericana, 1999), romance de Augusto Roa Bastos, acredita ter terminado o diálogo com Jimena. Um diálogo que ele  rotula de político, acontecido na tarde fria de um domingo de fevereiro em que a neve caindo em Nevers diluía o contorno da paisagem. E nessa paisagem que lhes é alheia, eles se ligam a um outro ritual: o do mate quente e espumoso e voltados para a realidade distante e trágica de  um país reprimido e habitado pelo câncer da corrupção.Félix Moral é a voz da denúncia, e a voz da esperança fervorosa e alucinada. Augusto Roa Bastos lhe concede essa voz necessária, imprescindível, mas elude o maniqueísmo quando ele a medeia na voz da interlocutora a precisar conceitos, a negar certezas. Sobretudo, quando lhe permite a lucidez da autocrítica.

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