Félix Moral é paraguaio e vive no
exílio, na França. Jimena Tarsis já nasceu no exílio, filha de espanhóis que a
Guerra da Espanha transformou em refugiados, acolhidos na França. Estão juntos,
unidos pelas afinidades - o impossível retorno às origens - e pelos sentimentos
que sentem um pelo outro, mas, também, submetidos aqueles que resultam de suas
experiências anteriores, excessivamente dolorosas. Experiências que embora
sejam ambas resultados de uma tirania originam, haja visto as condições de vida
e temperamentos, uma visão de mundo que
pouco tem em comum. Ainda que Jimena Tarsis sempre estivesse disposta a escutar
as divagações de seu companheiro sobre a terra natal, há temas que ele não pode
compartilhar: a reflexão sobre esse ato
extremo final que irá justificar sua existência. Pois acredita que, ainda sendo cego, surdo e mudo, há momentos em que
tudo o que foi e é o ser humano pode se resumir num ato supremo de resgate pra
si mesmo e para os outros.Ponto de partida para um longo entrecruzar de
ideias, não somente a propósito desse ato de resgate como sobre a execução de
um tirano. Jimena não acredita que simplesmente a sorte determine um resgate,
no seu entender, sempre improvável e sim que não são as pessoas que escolhem a
situação limite que as levará à ação mas é a situação limite, quando se apresenta,
que irá escolher o executante da ação. E o questiona se ele se acha capaz,
contaminado pela ideia de redenção, absorvida na sua casa cheia de padres e de
freiras, de um ato supremo e se considera ser ele o
escolhido. Porque o desejo de Félix Moral é dar morte ao tirano, um homem nefasto e medíocre cujo poder
absoluto só se pode forjar sobre a completa fraqueza dos oprimidos. Justifica esse querer obsessivo – não saber
como agir e desejar sabê-lo – e admite estar condenado ao fracasso, mas,
também, se sente convicto de que em seu país sitiado e massacrado é preciso que se produza um ato único e não repetido para liberar um indivíduo ou um povo do poder inumano que o subjuga. Estuda os planos de
quase uma centena de conspirações e atentados fracassados e conclui que o
principal erro de todos eles foi o de empregar métodos rotineiros: balas,
granadas, túneis subterrâneos sob o palácio de governo ou sob o itinerário
cotidiano, carro bomba, franco-atiradores de elite. E foram muitos e nem todos
os tornados públicos para não oferecer
para a escura multidão que espera no fundo de seu medo essa possibilidade salvadora. Para Félix Moral dar fim, o quanto
antes, ao tirano a quem considera um verdadeiro criminoso de guerra, é uma imperiosa necessidade pois além de ter
instituído a ordem superior, o único
estatuto que ele permite e que funciona sob o seu controle pessoal, acrescenta
ao já conhecido método, dividir para reinar algo mais poderoso: corromper e prostituir
para amolecer a sociedade. Assim a converte
em rameira complacente e servil que
dificulta o aparecimento de um verdadeiro líder revolucionário. Ele deve surgir
do povo, diz Félix Moral ainda que o povo, na sua grande maioria, esteja
submetido ao tirano pelas prebendas miseráveis ou esmagados pelo terror da
repressão, das torturas e o genocídio sistematizado. É o que ele responde a sua
interlocutora que duvida da existência de um tirano assim no Paraguai e a
lembrar que o medo é a única forma de consciência pública existente no pais,
como o foi na Espanha durante a ditadura franquista. Diante da reafirmação
convicta de que,então, é preciso liquidar o tirano, enunciada por Félix
Moral, ela responde que há coisas mais importantes do que apunhalar ou enforcar
o tirano e acrescenta: os tiranos morrem e os povos sobrevivem, lembrando que Franco
não pode liquidar com a Espanha. Félix Moral se apoia, então, no conceito
da justiça que deve ser posta em prática
e nos fatos que a exigem: a repressão, o genocídio, os crimes de lesa
humanidade do nazismo e do fascismo. E nas leis que a tornam possível: a
ciência jurídica, o código penal, os tribunais especiais. Conceitos e práticas
que para Jimena são utópicos, armadilhas, jogos de palavras, pois, no seu
entender, não existe a menor possibilidade de julgar nem o indivíduo, nem a
sociedade, nem o universo, nem a si próprio. Pergunta-se e pergunta: quem iria
julgar? Quem iria aplicar a justiça?
Félix
Moral não se deixa convencer e irá achar um meio, não convencional, para
executar o tirano. Porém, no diálogo mantido com Jimena, embora sonhando com
uma justiça precisa e inadiável, se permite conservar uma distancia
que o leva a um inesperado auto julgamento. Ao enunciar seus axiomas – Um líder revolucionário autêntico surge da
massa do povo; O monstro deve morrer enforcado
pelo povo e arrastado pelas ruas...; Há uma justiça imanente e outra prática, imediata, que deve ser executada
para o bem de todos; Há uma situação limite sem retorno possível em que tudo se
joga, a cara ou coroa, num relâmpago;
Estou acostumando meu olhar ao sangue, estou aprendendo a ver...a procurar a maneira de fazê-lo – ou
a fase lhe parece de um ridículo insuportável, ou sente que está recuperando o tom falsamente rebelde e patrioteiro dos primeiros anos de exílio, ou
percebe que está a teorizar com certo automatismo, ou define sua frase como
ribombante e trivial ou se sente ridículo recitando
o típico versículo progre do intelectual comprometido. É
quando Félix Moral, o narrador de El
Fiscal (Sudamericana, 1999), romance de Augusto Roa Bastos, acredita ter
terminado o diálogo com Jimena. Um diálogo que ele rotula de “político”,
acontecido na tarde fria de um domingo de fevereiro em que a neve caindo em
Nevers diluía o contorno da paisagem. E nessa paisagem que lhes é alheia, eles
se ligam a um outro ritual: o do mate quente
e espumoso e voltados para a
realidade distante e trágica de um país
reprimido e habitado pelo câncer da corrupção.Félix Moral é a voz da denúncia,
e a voz da esperança fervorosa e alucinada. Augusto Roa Bastos lhe concede essa
voz necessária, imprescindível, mas elude o maniqueísmo quando ele a medeia na
voz da interlocutora a precisar conceitos, a negar certezas. Sobretudo, quando
lhe permite a lucidez da autocrítica.
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