Romance
do exílio. Da ditadura. De esperanças loucas e de amores desenfreados. Sem
dúvida, História do Continente: El Fiscal (Buenos Aires, Sudamericana,
1998), de Augusto Roa Bastos, o terceiro de sua trilogia sobre o “monoteísmo do
poder” que iniciou com Hijo de Hombre (1960) e continuou com Yo
el Supremo (1974). Uma obra que o escritor paraguaio, verdadeiro mestre da
escrita, constrói numa surpreendente riqueza de recursos narrativos.
Felix
Moral, o personagem narrador, vive no exílio. O amor de Jimena Tarsis que o
ajuda a recuperar o sentido da vida, seu trabalho como professor de Literatura
e Civilização Hispano-americana e o cenário em que vive, Nevers, uma pequena
cidade do norte da França, onde a primavera é
incomparável, poderiam ser o bastante para que se descobrisse feliz. No
entanto, as lembranças da terra natal, a certeza de que a ela irá voltar e o
sempre renovado querer a destruição do tirano e a sua tirania que martiriza e
aniquila o seu país, não lhe dão tréguas. Quando surge a ocasião – um convite
para participar de um Congresso sobre História, Cultura e Sociedade na América
Latina do Século XX, em Assunção – decide ir para, mais uma vez, tentar
conseguir a morte do general presidente que assina o convite. Os infindáveis
malfeitos que o tornam merecedor da pena capital que pretende lhe dar, são
dados a conhecer ao leitor pelo diálogo entre Clovis de Larzac, francês,
funcionário no Departamento para a América Latina do Quay d’Orseay, e Felix
Moral que dele recebe o convite. E pelos que entremeia na carta, espécie de
diário que escreve para a sua companheira e que se constitui o corpus de El
Fiscal: um mundo hiperbólico de crueldade e de horror que se desvenda. Cem
mil camponeses sem terra, outros tantos mil índios metralhados por invadir os
imensos latifúndios, um sistema repressivo que se serve dos mais terríveis
métodos de tortura e extermínio.
A
viagem Paris-Assunção se faz num imenso e
supermoderno boeing, pintado de vermelho e repleto de convidados e da tribu local, os ricaços e os altos
funcionários do regime que estão voltando de suas douradas viagens de turismo por diversos países do mundo, com
suas mulheres cheias de jóias, perfumes e maquiagem, vestidas de acordo com as
revistas de moda que as tornam um pouco grotescas como criadas em férias
que estivessem fantasiadas de patroas.
A
aproximação à capital paraguaia é progressiva. Primeiro, Felix Moral constata
que dentro de vinte minutos irá chegar na sua cidade natal que, no entanto,
pela janela do avião não lhe é possível vislumbrar. Logo, perto do momento em
que o avião deveria aterrissar, sente um repúdio que aumenta até quase a náusea
e a paisagem mineral que logra ver lhe é desconhecida e desaparece. E,
surpreendentemente, desce no Rio de Janeiro, numa escala para a troca de
tripulação e embarque de novos passageiros. No prosseguimento do vôo, surge um
momento de tensão diante de suposto perigo, logo o opíparo almoço, regado a
champanhe e a voz do comandante, anunciando que a aeronave vai atravessar a
fronteira entre o Brasil e o Paraguai. Finalmente, a aterrissagem e o
desembarque em meio ao tumulto, provocado por uma polícia implacável com suas
armas e seus cães e seus mercenários que aniquilam o terrorista que se achava
entre os passageiros.
Em terra, Felix Moral sente que jamais havia respirado uma atmosfera tão vil
[...], o fedor pestilento da
corrupção vitoriosa e se submete à acolhida preparada aos congressistas: limosines blindadas, escuras e reluzentes,
cujas portas eram abertas pelos guardas que as rodeavam; recebimento das
credenciais e das luxuosas pastas; quarto suntuoso de hotel apropriado para
novos ricos em férias, traficantes de armas e de drogas e participantes de
congressos internacionais. Afastando um pouco a cortina da janela, observa o
movimento da rua onde não vê crianças e onde as pessoas caminham encurvadas,
com as cabeças baixas. Descobre-se mais envelhecido que elas e não reconhece a
cidade de sua juventude: Assunção mudou
muito. As cidades onde aconteceram muitas calamidades são medrosas. Esta é
astuta e desconfiada com os intrusos e adventícios, sobretudo com os
transgressores do proibido. Mal chegara e já percebera o seu estado de cidade sepulcral, ofendida pela presença dos mercenários asiáticos,
iluminada com perpétua luz artificial,
(a luz de Itaipu que ilumina o Paraguai num dia perene segundo explica um
assecla do ditador), a encobrir horrores e onde não se mostram as pessoas
comuns – vendedoras de frutas e de pão, meninos engraxates, rebeldes, mendigos,
líderes políticos, sociais ou sindicalistas – mas criminosos de gola e gravata,
personagens de aparatosa presença.
Na
verdade, não pode se eximir de acompanhar os passos dos congressistas nos
programas oficiais e muito pouco mais, ele verá à noite, ao se afastar do
hotel, em busca do velório do terrorista morto: uma ruela de terra, e em meio a uma selva de plantas aquáticas,
uns ranchos suspensos em frágeis pilotis. Então percebe como gotas de uma chuva intermitente,
partículas brandas e cheirosas arrastadas pelo vento e que ele quer saber o que
são e de onde vem. A resposta lhe é dada pelo funcionário do hotel que o
acompanha: São brotos de fetos. Também de
outras árvores. Continuam, ainda, voando de noite e de dia. Caem em qualquer
parte e tornam a nascer onde encontram boa terra [...]. Para construir a
represa tiveram que derrubar a selva. Derrubaram milhões de hectares. Já não há
mais mata virgem. Esses brotos de fetos e de outras espécies de árvores
escaparam da mortandade da madeira. Escapam e voam com os ventos do este e do
norte em busca das terras que perderam. Mas não tem memória. Voam cegas. O
vento os leva onde quer.
A
Felix Moral só lhe resta esperar o momento para realizar o que pretende.
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