domingo, 30 de março de 2003

Frida Kahlo por Carlos Fuentes


...admitir que há trilhos mas usá-los para escapar, para se liberar...
                                                           Frida Kahlo na narrativa de Carlos Fuentes. 

Existe liberdade, exclamava Laura Díaz sentindo que algo de novo acontecia no México com o governo revolucionário de Obregón ao constatar que o ministro da Educação tinha entregue os muros dos edifícios públicos aos pintores  para que fizessem o que fosse de seu agrado: ataques ao clero, à burguesia, à Santíssima Trindade, ao próprio governo que os pagava. Para vê-los trabalhar, Laura Díaz vai até onde Orozco e Diego Rivera estavam pintando os seus murais. Carlos Fuentes, no romance Los años con Laura Díaz (Alfaguara, 1999), pelo olhar de seu personagem, esboça um Orozco tolhido, míope, de lábio severo e cenho áspero e um Diego Rivera, sapo imenso, gordo, alto com os olhos saltados [...]. O primeiro somente tinha a atenção voltada para o que fazia; o segundo, a percebe sentada nas escadas do Palácio Nacional é tocado pela sua beleza e a interpela. Quando, porém, outra vez, toda vestida de preto, de luto pelo pai, ela vai para vê-lo trabalhar, um dos assistentes do pintor pediu que se retirasse, pois Diego Rivera tinha medo do azar e não podia pintar e exorcizar a sorte ao mesmo tempo.

            Mais tarde, tendo abandonado o marido e tendo sido abandonada pelo amante, num impulso, chega na casa do pintor, pedindo teto e trabalho. Ele, outra vez, reage com o luto que ela, por outras razões, vestia e lhe diz para pedir emprestado a sua mulher algo mais colorido. Então surge Frida Kahlo, descendo as escadas do estúdio, mostrando-se à Laura Díaz com seus colares, medalhas, anéis, sua ampla saia de camponesa, seu cabelo preto trançado com tiras de lã. Pisa em falso, Laura Díaz corre para ajudá-la e lhe toca a perna seca, descarnada que ela esconde, como seu andar de renga, sob as saias longa. Era na véspera da viagem aos Estados Unidos onde Diego Rivera, convidado por Heny Ford, devia pintar um mural no Instituto de Artes de Detroit e ela contrata Laura Díaz para ir junto e ajudá-la. De trem, seguiram viagem, atravessando, primeiro, os desertos mexicanos e, logo, as imensas planícies dos Estados Unidos. Enquanto o trem corria, Frida Kahlo contava a Laura Díaz seu tempo de adolescente, quando se vestia de homem e com o grupo de rapazes de que fazia parte, percorria a cidade do México para descobri-la nas suas largas avenidas e ruelas escuras e cheias de surpresa..., procurando companhia, amizade e, principalmente, eludir a solidão. E sobre esse dia de setembro de 1925, quando um bonde bateu no ônibus em que ela viajava. Um acidente que a quebrou inteira e de cujas seqüelas jamais foi liberada, escondendo-as nas amplas mangas e nas saias compridas.

            Nos Estados Unidos, enquanto Diego Rivera se jogava no seu trabalho de pintar homens e máquinas, Frida Kahlo se fazia ajudar por Laura Díaz tanto para se vestir como para comparecer às festas oferecidas pelos milionários da indústria ou para ir se divertir com os filmes do Gordo e o Magro. Numa das vezes, no cinema, expressando-se no entusiasmo do riso, das lágrimas, das exclamações, de súbito gritou porque estava se sentindo mal. Perdera o filho que estava esperando. No hospital, Diego Rivera pede que lhe dêem cadernos, lápis, aquarelas. Começou a pintar rápida e febrilmente, enchendo o quarto de papéis e do cheiro das cores, expressando, como bem o compreendeu Diego Rivera, toda a verdade, o sofrimento, a crueldade do mundo [...]

            Uma flor exausta, mas em expansão a irá definir Carlos Fuentes. E lhe atribuindo palavras e confidências e lhe desenhando os gestos para reinventá-la, procura as verdades de seu coração e um pouco desse momento em que viveu num México fervilhando de idéias e de impaciências cuja história da arte somente será completa com os jogos de cores e de formas que ela inventou.

domingo, 23 de março de 2003

Diálogos didáticos na ficção do Continente.Érico Veríssimo


            É um recurso que aparece e torna a aparecer nos romances de Érico Veríssimo: diálogos em que personagens – como no primeiro volume de O Arquipélago – discutem o fazer literário, idiosincrasias próprias do gaúcho, situações políticas do Rio Grande do Sul, o processo histórico brasileiro, questões ideológicas. São inúmeros, se travam entre dois ou mais interlocutores e se estruturam para expressar-lhes as convicções.

            No capítulo “Reunião de família II”, Rodrigo Cambará convalesce de um edema agudo de pulmão. Tem a sua volta, Floriano, o filho mais velho, literato em busca de seu caminho, Roque Bandeira, velho amigo que se diz anarquista, um sobrinho, Irmão Zeca, religioso mariano e Eduardo, seu outro filho, militante do Partido Comunista. São quase dez horas da noite e um aguaceiro interrompe o comício político que se realiza na praça. No quarto, todos fumam, também o doente e os discursos que lhe chegavam a meias geram comentários que levam a falar de ditadores e regimes de força. Para não deixar a conversa esmorecer, Rodrigo Cambará provoca Floriano: que explique da necessidade que tem o povo de governos fortes. Eu acho [ele responde] que para a maioria das pessoas a liberdade, com a responsabilidade que envolve, é um fardo excessivamente pesado. Daí a necessidade que tem o homem comum de refugiar-se no seio dum grupo humano ou colocar-se sob a tutela dum chefe autoritário que, se lhe tira certas liberdades civis, lhe dá, em troca, a sensação de segurança e proteção de que ele tanto precisa. Convicção reafirmada por Roque Bandeira, a lembrar o exemplo dos Estados Unidos onde, segundo ele, se inventou o oitavo pecado mortal: o de desobedecer ao código do grupo, o de não pensar, sentir ou agir de acordo com os padrões estabelecidos pela comunidade, o de não aceitar a estandardização das idéias, dos hábitos, da arte, da literatura, dos gestos sociais, dos bens de consumo... O inconformado passa a ser marginal, um elemento subversivo, uma ameaça à ordem social. Duas réplicas que serão o ponto de partida do entrecruzar de idéias, expostas numa dezena de páginas, em que os personagens serão fiéis a si mesmos ao defenderem seus  pontos de vista. Rodrigo Cambará, provocante, mas incapaz de acompanhar uma exposição de idéias mais profunda, procura conduzir o assunto para o lado que lhe interessa e que ele melhor conhece: o Rio Grande do Sul. Embora médico e com longa experiência na vida pública, o temperamento, a  idade e seus achaques, o mostram imaturo nas suas contínuas exigências – quer que lhe acendam o cigarro, que lhe sirvam cerveja, que tragam o cafezinho ou um lenço molhado em água de colônia, um pouco de sal de frutas – e dominador nas frases indelicadas com que interrompe o interlocutor com o qual não concorda – Acabas de dizer a maior besteira de tua vida, meu filho, Não digas asneiras!, É melhor calares a boca, Vai dormir, rapaz!, Não me venhas com asneira. O que estará coerente com a sua visão de mundo, conservadora e teimosa: sempre haverá comandantes e comandados, induzindo-o a acreditar que pela primeira vez na nossa História encontramos um líder, na figura de Getúlio Vargas[...], e que o gaúcho nunca abdicou de seu código de honra, que existe uma grande beleza nas lealdades desinteressadas desses amigos, peões, capangas, criados que votavam e engrossavam os exércitos em tempo de revolução. No entanto, não logra impedir a expressão de Floriano, Eduardo, Irmão Zeca e Roque Bandeira, delineando suas verdade e suas dúvidas, numa sucessão de assertivas sobre a figura do ditador, os próceres gaúchos, o marxismo, o papel da Igreja no Estado Novo, a condição humana e a responsabilidade do escritor. Gestos, maneiras de dizer, de olhar expõem os perfis, ordenam o ritmo da narrativa: Roque Bandeira consulta o relógio, ergue a mão gorda com o indicador enristado na direção do interlocutor; Irmão Zeca encolhe os ombros, caminha de um lado para o outro, apalpando o crucifixo que traz pendurado  no pescoço; Floriano enfia as mãos nos bolsos das calças e dá uns passos pelo quarto; Eduardo boceja e atira fora o toco do cigarro. Eles se expressam ou com voz sonolenta, ou num murmúrio desdenhoso, ou a fazer um esforço para falar com naturalidade. E com um olhar. Divertido ou cúmplice no piscar dos olhos, o de Roque Bandeira; silencioso, dirigido para o assoalho ou para as próprias botinas, o do Irmão Zeca; lançado a seu redor, admirando-se que os demais o escutem sem protestos, o de Floriano. E, desafiante, o de Eduardo. Agressivos, trocistas ou de impaciência os sentimentos afloram no jogo de palavras onde permeiam o ceticismo de Roque Bandeira, a crença religiosa, a fé no Partido e as incertezas quanto aos deveres do escritor cuja síntese é feita por Floriano: Aqui estou [...] diante de quatro amigos, nenhum dos quais parece aceitar ou compreender minha posição. O Zeca me quer fazer crer no seu Deus barbudo que distribui prêmios e castigos e cujos preceitos (que não sei como foram dados a conhecer ao homem) devemos obedecer. Por outro lado, o Edu me assegura que a única maneira lógica e decente da gente participar na luta social é sentando praça no seu Partido. Em suma, quer que eu troque o que ele chama de torre de Marfim pela Torre de Ferro do PC. Meu pai acha que a panacéia para todos os males é a volta do Dr. Getúlio ao poder, isto é, o Estado paternalista. E ali o nosso Bandeira, com quem tenho algumas afinidades intelectuais, me considera um  toureiro tímido, desses incapazes de enfrentar o touro no momento de la verdad.... De fato, cada um se ancora na sua verdade e quando Eduardo questiona o sistema vigente e as pretensas boas consciências – Até que ponto vocês os liberais, os democratas, os católicos, os conservadores etc. ...etc... respeitam mesmo a pessoa humana? Permitindo que três quartas partes da população do mundo viva num plano mais animal que humano? Queimando café e trigo por uma questão de preços quando há fome nos cinco continentes da terra? Deixando que continue a exploração do homem pelo homem, a usura, a prostituição... enfim, todos esses cancros da ordem capitalista? – o pai já está pensando em outra coisa, Roque Bandeira parece mergulhar numa modorra que o impede de reagir, o Irmão Zeca silencia e Floriano guarda silêncio.

domingo, 16 de março de 2003

Diálogos didáticos na ficção do Continente. Augusto Roa Bastos


            Félix Moral é paraguaio e vive no exílio, na França. Jimena Tarsis já nasceu no exílio, filha de espanhóis que a Guerra da Espanha transformou em refugiados, acolhidos na França. Estão juntos, unidos pelas afinidades - o impossível retorno às origens - e pelos sentimentos que sentem um pelo outro, mas, também, submetidos aqueles que resultam de suas experiências anteriores, excessivamente dolorosas. Experiências que embora sejam ambas resultados de uma tirania originam, haja visto as condições de vida e  temperamentos, uma visão de mundo que pouco tem em comum. Ainda que Jimena Tarsis sempre estivesse disposta a escutar as divagações de seu companheiro sobre a  terra natal, há temas que ele não pode compartilhar: a reflexão sobre esse ato extremo final que irá justificar sua existência. Pois acredita que, ainda sendo cego, surdo e mudo, há momentos em que tudo o que foi e é o ser humano pode se resumir num ato supremo de resgate pra si mesmo e para os outros.Ponto de partida para um longo entrecruzar de ideias, não somente a propósito desse ato de resgate como sobre a execução de um tirano. Jimena não acredita que simplesmente a sorte determine um resgate, no seu entender, sempre improvável e sim que não são as pessoas que escolhem a situação limite que as levará à ação mas é a situação limite, quando se apresenta, que irá escolher o executante da ação. E o questiona se ele se acha capaz, contaminado pela ideia de redenção, absorvida na sua casa cheia de padres e de freiras, de um ato supremo e se considera ser ele  o   escolhido. Porque o desejo de Félix Moral é dar morte ao tirano, um homem nefasto e medíocre cujo poder absoluto só se pode forjar sobre a completa fraqueza dos oprimidos.  Justifica esse querer obsessivo – não saber como agir e desejar sabê-lo – e admite estar condenado ao fracasso, mas, também, se sente convicto de que em seu país sitiado e massacrado é preciso que se produza um ato único e não repetido para liberar um indivíduo ou um povo do poder inumano que o subjuga. Estuda os planos de quase uma centena de conspirações e atentados fracassados e conclui que o principal erro de todos eles foi o de empregar métodos rotineiros: balas, granadas, túneis subterrâneos sob o palácio de governo ou sob o itinerário cotidiano, carro bomba, franco-atiradores de elite. E foram muitos e nem todos os tornados públicos para não oferecer para a escura multidão que espera no fundo de seu medo essa possibilidade salvadora. Para Félix Moral dar fim, o quanto antes, ao tirano a quem considera um verdadeiro criminoso de guerra, é uma imperiosa necessidade pois além de ter instituído a ordem superior, o único estatuto que ele permite e que funciona sob o seu controle pessoal, acrescenta ao já conhecido método, dividir para reinar algo  mais poderoso: corromper e prostituir para amolecer a sociedade. Assim a converte  em rameira complacente e servil que dificulta o aparecimento de um verdadeiro líder revolucionário. Ele deve surgir do povo, diz Félix Moral ainda que o povo, na sua grande maioria, esteja submetido ao tirano pelas prebendas miseráveis ou esmagados pelo terror da repressão, das torturas e o genocídio sistematizado. É o que ele responde a sua interlocutora que duvida da existência de um tirano assim no Paraguai e a lembrar que o medo é a única forma de consciência pública existente no pais, como o foi na Espanha durante a ditadura franquista. Diante da reafirmação convicta de que,então, é preciso liquidar o tirano, enunciada por Félix Moral, ela responde que há coisas mais importantes do que apunhalar ou enforcar o tirano e acrescenta: os tiranos morrem e os povos sobrevivem, lembrando que Franco não pode liquidar com a Espanha. Félix Moral se apoia, então, no conceito da  justiça que deve ser posta em prática e nos fatos que a exigem: a repressão, o genocídio, os crimes de lesa humanidade do nazismo e do fascismo. E nas leis que a tornam possível: a ciência jurídica, o código penal, os tribunais especiais. Conceitos e práticas que para Jimena são utópicos, armadilhas, jogos de palavras, pois, no seu entender, não existe a menor possibilidade de julgar nem o indivíduo, nem a sociedade, nem o universo, nem a si próprio. Pergunta-se e pergunta: quem iria julgar? Quem iria aplicar a justiça?

            Félix Moral não se deixa convencer e irá achar um meio, não convencional, para executar o tirano. Porém, no diálogo mantido com Jimena, embora sonhando com uma justiça  precisa e  inadiável, se permite conservar uma distancia que o leva a um inesperado auto julgamento. Ao enunciar seus axiomas – Um líder revolucionário autêntico surge da massa do povo; O monstro deve morrer enforcado pelo povo e arrastado pelas ruas...; Há uma justiça imanente e outra  prática, imediata, que deve ser executada para o bem de todos; Há uma situação limite sem retorno possível em que tudo se joga, a cara ou coroa, num  relâmpago; Estou acostumando meu olhar ao sangue, estou aprendendo  a ver...a procurar a maneira de fazê-lo – ou a fase lhe parece de um ridículo insuportável, ou sente que está recuperando o tom falsamente rebelde e patrioteiro dos primeiros anos de exílio, ou percebe que está a teorizar com certo automatismo, ou define sua frase como ribombante e trivial ou se sente ridículo recitando o típico versículo progre do intelectual comprometido. É quando Félix Moral, o narrador de El Fiscal (Sudamericana, 1999), romance de Augusto Roa Bastos, acredita ter terminado o diálogo com Jimena. Um diálogo que ele  rotula de político, acontecido na tarde fria de um domingo de fevereiro em que a neve caindo em Nevers diluía o contorno da paisagem. E nessa paisagem que lhes é alheia, eles se ligam a um outro ritual: o do mate quente e espumoso e voltados para a realidade distante e trágica de  um país reprimido e habitado pelo câncer da corrupção.Félix Moral é a voz da denúncia, e a voz da esperança fervorosa e alucinada. Augusto Roa Bastos lhe concede essa voz necessária, imprescindível, mas elude o maniqueísmo quando ele a medeia na voz da interlocutora a precisar conceitos, a negar certezas. Sobretudo, quando lhe permite a lucidez da autocrítica.

domingo, 9 de março de 2003

Diálogos didáticos na ficção do Continente.Carlos Fuentes


            Los años com Laura Diaz é a história de uma vida que, entrelaçando-se com outras, se adentra no século XX  e o percorre,  fazendo dele, também, um personagem.

            Laura Díaz nasce numa propriedade rural do México e vai descobrindo o mundo. O que lhe está próximo e esses outros onde vai chegando – Xalapa,  cidade do México, Detroit, Lanzarote – mergulhada no seu fado. Sempre à sombra dos homens a quem ama, será testemunha de idéias e das lutas que por elas livram os homens até descobrir, tardiamente,  o próprio caminho. Escuta, percebe, critica, se opõe, constata significados que se lhe deparam nos diálogos e monólogos cujas temas – a Revolução Mexicana, o império nazista, a Guerra da Espanha – tanto quanto os interrogantes sobre a justiça, a beleza, a fé, as possíveis verdadeiras razões que estão na origem dos fatos, esboçam momentos e determinantes históricos dos anos que se sucedem. 

            Haja visto a tradicional postura dos estudiosos que pertencem aos pólos irradiadores de cultura  -  não somente possuem meios de realizar  pesquisas como os de publicar os resultados, quase sempre,  aceitos, sem senões,  pelo resto do mundo – que, muito raro, se ocupam de temas que não sejam aqueles relacionados ao seu próprio mundo, a Revolução Mexicana que desatou todas as forças adormecidas do país não ocupa o lugar que merece, sobretudo no que se refere ao seu ideário, indiscutivelmente inovador. No México, alimenta fortemente  o texto  ficçional e a tal ponto que é possível falar do “romance da revolução”. Em Los años com Laura Díaz sua presença é algo de distante – não mais descrições de lutas e ações heróicas como em Gringo viejo (1985),  – mas irá se impor com essa outra realidade em que também cabem os operários e a sua luta. Uma vertente expressa por Juan Francisco Lopes Greene, marido de Laura Díaz, líder da classe operária. Na primeira vez que encontra numa festa aquela que irá ser a sua mulher lhe conta como se organizou a luta operária na Revolução, começando nas fábricas e nas minas e lutando contra a ditadura de Huerta. Está convicto de que os camponeses que tem nos chapéus a imagem da virgem, assistem a missa de joelhos, não são modernos e sim católicos e rurais e reacionários. Que os verdadeiros revolucionários são os trabalhadores. Na voz do amigo que o levara à festa, outras verdades, expressando as contradições de uma revolução contraditória num país contraditório. E outra vez Juan Francisco, amparando-se no pronome “nós”, reafirma a força do operariado frente ao poder que até concede aumento de salário, jornada de oito horas semanais, semana de seis dias mas não a democracia. Mais tarde, já casados, na cidade do México,  ele fala à multidão, no dia 1 de maio de 1922, para exigir o cumprimento do artigo 123 da Constituição onde pela pela primeira vez na história da humanidade o direito ao trabalho e à proteção ao trabalhador tem a força de lei.  Em casa, ele reúne os amigos do Sindicato e nas discussões se elevam suas vozes, a  eloqüência que havia estado emudecida durante séculos inteiros,  percorrendo, na intenção de entender, os meandros da busca pelo poder que termina por destruir toda e qualquer boa intenção até que, por fim,  o anfitrião argumenta: - Camaradas, a nós o que importa são as coisas muito concretas, a greve, os salários,  a jornada de trabalho, e logo obter outras conquistas como as férias pagas, a maternidade remunerada,  a estabilidade social. Não percam isso de vista, camaradas. Não se  percam nos abismos  da política. Depois,  o filho já moço, que ele instrui sobre a história do movimento operário no México, existente já em 1867,  quando foi celebrado o primeiro Congresso Geral  Operário da República Mexicana. E mais tarde,  explica a sua mulher que o questiona, da dificuldade em manter a fama de revolucionário valente e de conservar  o heroísmo quando a idade e as circunstâncias  já não o permitem.  É quando o homem se sobrepõe, então, ao  papel que representa e numa frase sintetiza esse destino que, sem perdão, condena o homem, ainda que persiga utopias:  Todos lutamos pela Revolução  contra a injustiça mas também contra a fatalidade.  O que significa não  querer continuar a ser pobre, humilhado, sem direitos, crescer com fome, repartir o mísero espaço com muitos, ver a mãe tornar-se  uma anciã aos trinta anos.

            Alongam-se os diálogos, se interrompem para reaparecer páginas adiante. Os personagens se extraviam nos seus sentimentos e nas suas razões. O ritmo narrativo se torna lento e o desejo de esclarecer ou convencer, prevalece, então, num relato  que ao se desejar realidade e testemunho, elimina, por vezes, as fronteiras entre o elemento ficcional e o dialético/didático.

domingo, 2 de março de 2003

Cidades.Assunção


            Romance do exílio. Da ditadura. De esperanças loucas e de amores desenfreados. Sem dúvida, História do Continente: El Fiscal (Buenos Aires, Sudamericana, 1998), de Augusto Roa Bastos, o terceiro de sua trilogia sobre o “monoteísmo do poder” que iniciou com Hijo de Hombre (1960) e continuou com Yo el Supremo (1974). Uma obra que o escritor paraguaio, verdadeiro mestre da escrita, constrói numa surpreendente riqueza de recursos narrativos.

            Felix Moral, o personagem narrador, vive no exílio. O amor de Jimena Tarsis que o ajuda a recuperar o sentido da vida, seu trabalho como professor de Literatura e Civilização Hispano-americana e o cenário em que vive, Nevers, uma pequena cidade do norte da França, onde a primavera é incomparável, poderiam ser o bastante para que se descobrisse feliz. No entanto, as lembranças da terra natal, a certeza de que a ela irá voltar e o sempre renovado querer a destruição do tirano e a sua tirania que martiriza e aniquila o seu país, não lhe dão tréguas. Quando surge a ocasião – um convite para participar de um Congresso sobre História, Cultura e Sociedade na América Latina do Século XX, em Assunção – decide ir para, mais uma vez, tentar conseguir a morte do general presidente que assina o convite. Os infindáveis malfeitos que o tornam merecedor da pena capital que pretende lhe dar, são dados a conhecer ao leitor pelo diálogo entre Clovis de Larzac, francês, funcionário no Departamento para a América Latina do Quay d’Orseay, e Felix Moral que dele recebe o convite. E pelos que entremeia na carta, espécie de diário que escreve para a sua companheira e que se constitui o corpus de El Fiscal: um mundo hiperbólico de crueldade e de horror que se desvenda. Cem mil camponeses sem terra, outros tantos mil índios metralhados por invadir os imensos latifúndios, um sistema repressivo que se serve dos mais terríveis métodos de tortura e extermínio.

            A viagem Paris-Assunção se faz num imenso e supermoderno boeing, pintado de vermelho e repleto de convidados e da tribu local, os ricaços e os altos funcionários do regime que estão voltando de suas douradas viagens de turismo por diversos países do mundo, com suas mulheres cheias de jóias, perfumes e maquiagem, vestidas de acordo com as revistas de moda que as tornam um pouco grotescas como criadas em férias que estivessem fantasiadas de patroas.

            A aproximação à capital paraguaia é progressiva. Primeiro, Felix Moral constata que dentro de vinte minutos irá chegar na sua cidade natal que, no entanto, pela janela do avião não lhe é possível vislumbrar. Logo, perto do momento em que o avião deveria aterrissar, sente um repúdio que aumenta até quase a náusea e a paisagem mineral que logra ver lhe é desconhecida e desaparece. E, surpreendentemente, desce no Rio de Janeiro, numa escala para a troca de tripulação e embarque de novos passageiros. No prosseguimento do vôo, surge um momento de tensão diante de suposto perigo, logo o opíparo almoço, regado a champanhe e a voz do comandante, anunciando que a aeronave vai atravessar a fronteira entre o Brasil e o Paraguai. Finalmente, a aterrissagem e o desembarque em meio ao tumulto, provocado por uma polícia implacável com suas armas e seus cães e seus mercenários que aniquilam o terrorista que se achava entre os passageiros.

             Em terra, Felix Moral sente que jamais havia respirado uma atmosfera tão vil [...], o fedor pestilento da corrupção vitoriosa e se submete à acolhida preparada aos congressistas: limosines blindadas, escuras e reluzentes, cujas portas eram abertas pelos guardas que as rodeavam; recebimento das credenciais e das luxuosas pastas; quarto suntuoso de hotel apropriado para novos ricos em férias, traficantes de armas e de drogas e participantes de congressos internacionais. Afastando um pouco a cortina da janela, observa o movimento da rua onde não vê crianças e onde as pessoas caminham encurvadas, com as cabeças baixas. Descobre-se mais envelhecido que elas e não reconhece a cidade de sua juventude: Assunção mudou muito. As cidades onde aconteceram muitas calamidades são medrosas. Esta é astuta e desconfiada com os intrusos e adventícios, sobretudo com os transgressores do proibido. Mal chegara e já percebera o seu estado de cidade sepulcral, ofendida pela presença dos mercenários asiáticos, iluminada com perpétua luz artificial, (a luz de Itaipu que ilumina o Paraguai num dia perene segundo explica um assecla do ditador), a encobrir horrores e onde não se mostram as pessoas comuns – vendedoras de frutas e de pão, meninos engraxates, rebeldes, mendigos, líderes políticos, sociais ou sindicalistas – mas criminosos de gola e gravata, personagens de aparatosa presença.

            Na verdade, não pode se eximir de acompanhar os passos dos congressistas nos programas oficiais e muito pouco mais, ele verá à noite, ao se afastar do hotel, em busca do velório do terrorista morto: uma ruela de terra, e em meio a uma selva de plantas aquáticas, uns ranchos suspensos em frágeis pilotis. Então percebe como gotas de uma chuva intermitente, partículas brandas e cheirosas arrastadas pelo vento e que ele quer saber o que são e de onde vem. A resposta lhe é dada pelo funcionário do hotel que o acompanha: São brotos de fetos. Também de outras árvores. Continuam, ainda, voando de noite e de dia. Caem em qualquer parte e tornam a nascer onde encontram boa terra [...]. Para construir a represa tiveram que derrubar a selva. Derrubaram milhões de hectares. Já não há mais mata virgem. Esses brotos de fetos e de outras espécies de árvores escaparam da mortandade da madeira. Escapam e voam com os ventos do este e do norte em busca das terras que perderam. Mas não tem memória. Voam cegas. O vento os leva onde quer.

            A Felix Moral só lhe resta esperar o momento para realizar o que pretende.