domingo, 26 de janeiro de 2003

As agruras do Mestre 2

          Foi-lhe difícil aprender a ler e o conseguiu somente, quando a professora ensinou, não os nomes das letras, mas os sons. Também lhe resultou difícil acompanhar a maioria das aulas nos anos em que foi seguindo os estudos normais ou o curso de Direito que frequentou apenas e que abandonou bem antes de concluir porque o aprendizado que perseguia era o aprender a escrever.
  Criança franzina – aos quatro anos era pálido e ensimesmado, aos doze, raquítico e pálido – desenha, faz versos e canta. Ao recordar desses primeiros anos, no seu livro de memórias, Vivir para contarla (Buenos Aires, Sudamericana, 2002), Gabriel García Márquez reencontra suas raízes, todo um mundo que o foi construindo a par das leituras em atropelo e que o conduzem à longa e sofrida luta pela forma literária perfeita: como jornalista que irá se forjar no dia a dia das redações; e como o escritor que busca ser, cuja estréia se irá dar com a publicação do conto “La tercera resignación”, pelo El espectador de Bogotá, no dia 13 de setembro de 1947 e de “Eva está dentro de sua gato”, no mês seguinte. Um dos mais importantes articulistas do jornal e crítico severo, uns dias mais tarde, fez uma apreciação sobre esses contos, finalizando com uma afirmação definitiva e com o valor de um discernimento espontâneo que não sofreu, no momento, quaisquer influências: Com García Márquez nasce um novo e notável escritor. Embora os dizeres elogiosos e premonitórios de Eduardo Zalamea lhe tivessem provocado um impacto de felicidade, não o impediram de ter sobre esses contos um julgamento severo e inapelável – eles contém o gérmen de sua própria destruição – e que pouco irá mudar em relação aos que se lhe seguiram. Enredando-se na escolha dos temas e na estrutura narrativa, ainda que menos retóricos, os considera incapazes de sair do pântano. Quanto ao romance “La Casa”, que pretendia ser um drama da guerra dos Mil Dias no caribe colombiano, e sobre o qual ele mais falava do que escrevia, diante da realidade que se lhe apresenta aos olhos, ao voltar, com sua mãe, à pequena cidade de sua infância, lhe parece uma pura invenção retórica sem sustentação alguma numa verdade poética. Assim, constata que o modelo da epopéia com que sonhava não podia ser outro senão o da própria família que nunca fora protagonista de algo, mas testemunho inútil e vítima de tudo. Num rompante de emoção, começou a escrever o romance que diria ser de sua vida, já, então, podendo prescindir dos recursos artificiais, não, porém, da carga emocional que arrastava sem o saber e o tinha esperado na casa dos avós. Todavia, ainda assim, lhe foi necessário tempo e trabalho para encontrar o método correto que, no entanto, não o salvaguardou do tarefa de refazer muitas páginas, de se submeter aos critérios próprios do romance que não coincidiam com os seus, de hesitar entre os oitenta títulos possíveis que anotara num caderno;  de ler romances alheios para descobrir os mistérios de sua estrutura; de efetuar as renovadas correções, além das modificações  sugeridas pelo amigo rastreador de inconsequências; de perceber, depois de um ano de trabalho, que se encontrava num labirinto sem entrada nem saída; de comprovar que não sentia o romance respirar, que o via  naufragar sem saber onde estavam as fendas, pois somente ele próprio podia ter olhos para vê-las e coração para sofrê-las.

Entre os desânimos e as euforias, estava quase a terminar o romance quando tem conhecimento que a editora Losada de Buenos Aires poderia publicá-lo. E se lança, ainda uma vez, à leitura e releitura do texto. Modifica, inventa, revisa, num trabalho feito com a alma na mão para, finalmente, tomar a decisão serena de não publicá-lo. Um de seus amigos, contudo, não lhe deu tempo de manter a sua decisão. Tampouco, de uma leitura final e enviou os originais de La Hojarasca para Buenos Aires. Foram, para Gabriel García Márquez, dois longos meses de espera até o dia em que lhe chega o envelope com o papel timbrado da Losada, anunciando ter sido o romance recusado.Tal era o veredictum supremo de don Guillermo de Torre, presidente  do conselho editorial, sustentado com uma série de argumentos simples nos quais ressoavam  a dicção, a ênfase e a eficiência dos brancos de Castela.                                                       

Passado o momento em que pensou morrer e o da vergonha e o da consternação, Gabriel García Márquez entendeu que até as objeções mais ácidas lhe pareceram pertinentes. Empreendeu, levando em conta, também, as conclusões dos amigos, uma nova correção, eliminando trechos que entorpeciam na forma e no fundo a unidade estrutural do romance.

Em Vivir para contarla, que termina com a sua viagem à Europa, em 1955, Gabriel García Márquez não mais irá mencionar La Hojarasca, publicada nesse ano. Na sua biografia, Viaje a la semilla, em que Dasso Saldívar rastreia, minuciosamente, cada uma de suas obras, consta, com base em documentos e testemunhos de amigos, que foram quatro versões do romance até a sua primeira edição e uma quinta, pois, na segunda edição, quatro anos depois, Gabriel García Márquez suprimiu trechos e modificou frases. No entanto, num encontro que teve em 1989 com esse seu biógrafo, disse que La Hojarasca não passou por muitas versões: o que aconteceu foi que demorou muito para escrevê-la. Agora, nas suas memórias, afirma que o livro não teve nenhuma mudança de fundo durante a elaboração, nem nenhuma versão diferente do original, salvo supressões e remendos durante uns dois anos antes de sua primeira edição, quase pelo vício de seguir corrigindo até morrer.

            Certamente, levando a sério o que, ainda muito jovem, desejou ser, propondo-se a aprender a escrever do zero, com a tenacidade e a pretensão encarniçada de ser um escritor diferente.






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