domingo, 5 de janeiro de 2003

Um cenário em lampejos


            É um longo itinerário percorrido: de Porto Alegre ao Rio de Janeiro e do Rio de Janeiro ao sul do Rio Grande. Viagem que para o maluco (assim, muitas vezes, é designado pelos que o rodeiam) se inicia sem sentido, apenas acompanhando Norberto que o incorpora ao grupo para um breve passeio até o mar. Mas, a viagem se prolonga para os dois, não isenta de percalços e irá terminar, para o maluco, nos campos de sua infância. Situações se sucedem, desfilam tipos humanos, num relato feito de pequenos nadas em cenários que se fazem ver por um som, um odor, um movimento e, sobretudo, marcados pelo efêmero de um raio de luz ou de uma coloração cambiante. É o rumor da chuva, o apagado barulho do mar ou o seu murmúrio, surdo e doce, de veludo; o ruído misterioso e subterrâneo da cachoeira; o silêncio do verão, todo gordo de mil ruidozinhos, de chiados de insetos, de ruídos do vento, o chiar dos pneus, o ranger dos bondes nos trilhos. O aroma da noite, o odor maternal dos úberes, o perfume dos vegetais molhados, frios e penetrantes. Cheiro de vale, de vale profundo, com torrente. É o vento a dobrar galhos de árvores ou o morro a ter um movimento de pião, à medida que a estrada percorrida o contorna; o perder-se de uma nuvem lenta no céu. Um mover-se sugerindo o que passa, o transitório que irá se reafirmar no jogo de luzes e de cores: a enseada brincando com várias cores (as cores do céu); estrias de luz, do farol do carro, incidindo nas paredes da casa; a luz vinda das árvores urbanas, os arrepios da água, pontilhando de luzes a baía; os fios rápidos de chuva, a aprisionar as luzes da avenida; E, assim, também submissas ao momento, as cores: o violeta a lavar penhascos, o azul do céu que se desmaia pelo calor ou que se torna violáceo ao cair da tarde. O transparente da água que se faz muralha branca da cachoeira; a claridade que a meias a chuva torna cor de leite. 


            E, cenário que se amplia, a imagem fugaz apreendida no rápido passar do carro pela estrada:

[...] aqueles abismos que caíam das bordas da estrada curva, num plano violentamente inclinado, como leivas gigantescas, cobertas de grama. E a mataria fechando esses vales. As torrentes procurando, num murmúrio, a linha sinuosa em que poderiam escapar daqueles sucessivos anéis de montanhas. De vez em quando uma casa, um homem,[...]. Também, aquelas imagens percebidas de longe: as penedias de Torres na tarde azul, dando-lhe um ar risonho; no planalto, longe, pequena pela distância, as torres da igreja de Vacaria, sobressaindo do espalhado das casas. Ou entrevista, margeando as cidades suburbanas, a praça que parecia um descampado com seu mercado, uma casa baixa, tipo antigo, sólida, um rancho de taquaras, cercado de árvores raquíticas, as hortas, os pomares, os pés de ananás perto das cercas, as bananeiras carregadas de cacho. A melancólica, visão de uns telhados, de uns morros eriçados de casebres do Rio de Janeiro, se contrapondo à beleza da enseada do Botafogo, cheia de cores, ao seu casario e depois, às montanhas. Ou, perto de um rio, marcada por uma fileira de carvãozinhos mal acesos, Araranguá; a ponte do rio Pelotas, com seus balaústres simples e retos, longa, de cimento, encravada no vale. E a de Florianópolis, elegante e fina como um grande inseto pernilongo.

            E nesse apenas mencionado cenário, Dyonélio Machado vai situando o seu personagem, um dos mais comoventes do romance brasileiro e, ao redor dele, também efêmeros, um precioso desfile: policiais, médicos, comerciantes enriquecidos ou não, fazendeiros, presos políticos, picaretas, gente do interior, um professor universitário. Inseridos em situações as mais corriqueiras, os casos de honra que ficam sem resolver, a prisão aleatória e sem culpa formada, o achar de soluções, ainda que nem sempre dentro dos parâmetros usuais, para os problemas do cotidiano e que, também, muito breves, revelam um pequeno mundo que faz de O louco do Cati (Porto Alegre, Editora Globo, 1942), uma obra que pela sua concepção não apenas se antepõe a seu tempo, como sob o signo da beleza formal e as verdades que o habitam, ao tempo resiste, sem fissuras.

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