domingo, 19 de janeiro de 2003

Das agruras do Mestre 1


Assim sobrevivi à sorte e azar, comendo o que havia e dormindo onde Deus mandava[...].Gabriel García Márquez           

O livro se inicia com uma viagem, a que o escritor faz com sua mãe a Arataca, pequena cidade onde passara a infância na casa dos avós. E termina com sua chegada à Suíça, como enviado especial do jornal El Espectador para cobrir a Conferência dos Quatro Grandes. Entre essas decisivas viagens, um itinerário de muitas idas e voltas, refeito, agora, por Gabriel García Márquez nas suas memórias, Vivir para contarla (Buenos Aires, Sudamericana), publicadas em outubro deste ano.

Sua infância, adolescência, os primeiros contos, a iniciação como jornalista, em textos que se relacionam com sua obra de ficção pelo imaginoso uso do adjetivo e pela narrativa a fluir em meandros numa cronologia em que se alternam os diferentes tempos do passado e cujo sentido de humor não se esfuma diante da constante situação de pobreza que lhe determinou os dias enquanto viveu com seus pais e irmãos ou a eles esteve ligado pelo compromisso de ajudar na manutenção de uma família numerosa  em que os meios de subsistência jamais deixaram  de sofrer percalços. Assim, suas necessidades básicas foram sempre modestamente supridas. Calçar sandálias de peregrino, possuir duas mudas de roupa, usando uma enquanto a outra era lavada e posta para secar, na verdade, não lhe importou muito como tampouco ter originado a sua aparência de mendigo, restrições do banco para lhe pagar um cheque de relativa importância. Catadura de mendigo que, apenas passados os anos, ele vai entender não ser devida à pobreza ou à condição de poeta, mas à concentração de energias na sua teima de aprender a escrever. Então, ao vislumbrar o bom caminho, comprou suas primeiras roupas formais e pelo que chamou a dinâmica inconsciente do arrivismo social, começaram a incomodá-lo o calor do quarto onde dormia e o barulho dos vizinhos que o fizeram mudar-se para um bairro ameno do outro lado da cidade.

            Já lhe fora possível e sem queixas, ver-se privado de um lugar para dormir e não foram poucas às vezes em que deixou de comer por não ter com o que pagar. Na década de cinqüenta, com o que recebia do jornal, em Barranquilla, mal podia pagar o quarto e, não raro, ao não ter a quantia suficiente, embora fosse ela irrisória, se obrigava a dar os originais do romance que estava escrevendo, como garantia. Também, não era raro que um de seus amigos lhe passasse às escondidas a pequena quantia para a cama ou que as hóspedes de vida fácil que moravam no hotel, lhe emprestassem o sabonete para o banho. Mas, também podia acontecer que, não havendo outra solução, dormia umas horas na sala deserta da redação do jornal, ou sobre os rolos de papel das impressoras, ou ficava a escrever até altas horas, ou a ler num café – o café Roma era a casa que não tinha – para amanhecer num parque, o dormitório mais usado e fresco da cidade. Ou, aparecer com a rede embaixo do braço nos quartos de outros estudantes enquanto eles podiam suportar-lhe os pesadelos e o hábito de falar dormindo.

            Embora se refira a esses dias como o abismo da pobreza e que ele era de uma pobreza absoluta, não está a falar de algo desconhecido, uma vez que define aquela da casa paterna como
agotadora. Porém, ao enfrentá-la, com a ferocidade de leoa calada, sua mãe tinha, não somente uma índole para rir dos próprios recursos, como o de ferver, durante três dias, um joelho de boi para o caldo cotidiano ou ensinar aos filhos suportar as carências com dignidade. O que, certamente, não lhe era fácil, vinda de uma família que tinha sempre a mesa posta para dezesseis comensais previstos ou inesperados que chegavam diariamente no trem do meio dia e para os quais a avó recomendava fazer de tudo porque não se sabe o que irá agradar aos que chegam. Uma época de fartura, nas suas três refeições diárias que o deterioro social aniquilou, obrigando a reduzir para somente uma e que, ainda, para ser mais barata, não era feita em casa, mas comprada no mercado. Deterioro que por outras razões e motivos não a pouparam mais tarde, já casada, como o demonstra o testemunho de Gabriel García Márquez, relembrando suas palavras de queixa – várias vezes ficamos sem comer – ao falar com o marido pelo telefone numa de suas muitas e demoradas ausências. E, ainda que pai e mãe ensinassem a festejar os bons tempos e a suportar os maus, não foram poucos os seus descalabros e reincidências, originados de uma visão de mundo  que fugia da realidade e os deixava, a todos, durante longas épocas, privados das migalhas do pão de cada dia. 

            Assim, se alguma vez Gabriel García Márquez faz referência à comida – e a mais importante, talvez, seja aquela, criola, compartilhada com os amigos, em Aracataca, ao acompanhar a mãe, quando, provando  a sopa, tem a sensação de que um mundo inteiro despertava na sua memória – muitas outras se detém, sobretudo, na que lhe falta. Quando diz nunca ter faltado à escola, ainda que em jejum; quando, no internato em que esteve como bolsista, constata que a certeza das três refeições diárias era suficiente para supor que naquele refúgio de pobres, os estudantes viviam melhor do que em suas próprias casas; quando o pai o leva para viajar, ainda criança, e estipula que irão fazer somente uma refeição por dia.

            Doloroso aprendizado a prepará-lo para dias que não serão melhores. Entregue a seu destino, não se basta a si mesmo: Almoçava como podia, quando podia, onde podia e, nessa hora, lhe valiam o acaso de um convite numa tasca em que, por timidez, faz um pedido menor do que a fome que levava; ou o código da tribu do jornal para detectar se precisava – por estar há dois dias a pão e água – ser convidado para almoçar; ou, ainda, a compreensão dos  amigos bons e políticos interesseiros na época em que assinava a sua coluna “La Jirafa”, no El Heraldo de Barranquilla.

            Imune aos desejos de glória e de dinheiro, mas não à convicção de que a sua má sorte era congênita e sem remédio, sobretudo com as mulheres e o dinheiro, fumava doidamente e, doidamente, lia o que lhe caía nas mãos, percorrendo o caminho que, sem dúvida, lhe foi designado pelos deuses e cujos rumos ele foi descobrindo para chegar onde desejava: à perfeição de uma escrita que lhe deu a glória e o dinheiro.








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