domingo, 2 de fevereiro de 2003

Cidades. Buenos Aires


            No dia 14 de maio de 1928, aparece em Buenos Aires, o jornal El Mundo, um tablóide que se inscreve, pelo seu formato, pela sua diagramação, pelas notícias breves e de leitura fácil, num jornalismo definido por novos processos enunciadores da informação e por uma moderna tecnologia. A tais quesitos, o primeiro diretor, Alberto Gerchunoff, com a sua rica experiência em periódicos, onde exercia a crítica, incorpora, no corpo editorial, jovens escritores e, assim,   consolida um público que, até então, fora fiel a outros jornais. E Roberto Arlt que havia publicado, dois anos antes, El juguete rabioso, seu primeiro romance, além de uma importante colaboração em outros periódicos, assume a nota de costumes, então usual nos jornais da época e manterá cativos a milhares de leitores que o foram acompanhando no itinerário percorrido que só irá se interromper com a sua morte, em 1942. Iniciou-se com “ Aguafuertes porteñas” que, em junho de 2000, a Losada de Buenos Aires, reuniu sob o título Aguafuertes porteñas: Buenos Aires, vida cotidiana. A introdução de Silvia Saíta, em detalhes, lhe situa os principais tópicos – descrição de ruas e de bairros – que são o resultado de um trabalho originado num caminhar constante pela cidade e que lhe permite fixar tipos, costumes e conversas.

            Dezenas de tipos, desde os mais humildes até os que se permitem comprar o luxo supérfluo exibido nas vitrinas; os passeios diários na mesma rua; o sentar-se na calçada em frente da casa nos entardeceres de domingo; os namoros feitos de olhares; a atmosfera de Nova Iorque, transplantada, impondo o prestígio dos bares automáticos, dos sapatos amarelos, dos luminosos coloridos. E um ou outro diálogo entabulado ao acaso, que reproduz, fixa, sem inocência, um traço de caráter dessa imensa galeria que nenhum latino-americano desconhece, cuja suprema aspiração é viver sem trabalhar. Sob a rubrica “Elogio da vagabundagem”, um dos textos tem por título “O engraxate”. Roberto Arlt o inicia, contando que entrou no local, admirado de que o dono admitisse como empregado um tal bandoleiro que logo lhe foi dizendo:- Maldita miséria! Estou com uma preguiça. Diga, não é preferível sair para roubar?. Como resposta, a vítima (pois com a escova de lustrar os sapatos ele quase lhe destroçava os pés), pensando que bela alma de ladrão essa fera tem, lhe pergunta o que lhe agradaria fazer. Sintético, definitivo, o homem suspende a escova no ar [...] e como quem quer se livrar de um peso, responde: - Nada.

            Porém, Roberto Arlt vai, muitas vezes, além das breves descrições e das historietas. Sabe mostrar-se um crítico irônico ou mordaz diante da mediocridade e das incongruências que alimentam, quase sempre, o viver do Continente. Quando, por exemplo, observa o cotidiano dessas moças e moços, pobres empregados do comércio que passam o dia à espera de fregueses e enquanto isso conversam. Tudo o que eles tem para dizer, afirma o cronista, podem expressá-lo numa hora e três minutos. Logo o crânio permanece em disponibilidade. Ou quando constata que as festas são para os ricos, para os que podem pagá-la e quão pouco é dado ao pobre para que se divirta. Sente pena – diz que a alma lhe cai até os tamancos – como também dos que se submergem na solidão e que, deveras, não são poucos, perdidos no universo das cidades: o indivíduo que pelos acasos da fatalidade, se sente ilhado, só, perdido, o homem que, queira ou não, tem que se apoiar, exclusivamente em si mesmo e se converter numa espécie de urso solitário, de fera domada que esconde suas lágrimas e que, nas praças, oásis da civilização, arrasta sua fadiga [...], refugiando-se, ao entardecer, como essas feras que se ocultam para esperar que cicatrizem suas feridas, a aguardar que a noite chegue e o sono ou a morte. Aí está, sem dúvida, o romancista, emergindo dos textos que deve ao jornal, escritos em meio ao ruído agitado das redações e que remetem ao universo social de Buenos Aires tanto quanto a sua ficção, ao preconizar que da realidade social nascem os hábitos e os valores, as desigualdades, as opressões e os conflitos. Neles é que se enovelam os seus testemunhos e Buenos Aires se mostra, então, plena de vida e sem disfarces nas suas injustiças e nos seus ridículos.

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