No
dia 14 de maio de 1928, aparece em Buenos Aires, o jornal El Mundo, um
tablóide que se inscreve, pelo seu formato, pela sua diagramação, pelas
notícias breves e de leitura fácil, num jornalismo definido por novos processos
enunciadores da informação e por uma moderna tecnologia. A tais quesitos, o
primeiro diretor, Alberto Gerchunoff, com a sua rica experiência em periódicos,
onde exercia a crítica, incorpora, no corpo editorial, jovens escritores e,
assim, consolida um público que, até
então, fora fiel a outros jornais. E Roberto Arlt que havia publicado, dois
anos antes, El juguete rabioso, seu primeiro romance, além de uma
importante colaboração em outros periódicos, assume a nota de costumes, então usual nos jornais da época e manterá
cativos a milhares de leitores que o foram acompanhando no itinerário
percorrido que só irá se interromper com a sua morte, em 1942. Iniciou-se com “
Aguafuertes porteñas” que, em junho de 2000, a Losada de Buenos Aires, reuniu
sob o título Aguafuertes porteñas: Buenos Aires, vida cotidiana. A
introdução de Silvia Saíta, em detalhes, lhe situa os principais tópicos –
descrição de ruas e de bairros – que são o resultado de um trabalho originado
num caminhar constante pela cidade e que lhe permite fixar tipos, costumes e
conversas.

Dezenas
de tipos, desde os mais humildes até os que se permitem comprar o luxo
supérfluo exibido nas vitrinas; os passeios diários na mesma rua; o sentar-se
na calçada em frente da casa nos entardeceres de domingo; os namoros feitos de
olhares; a atmosfera de Nova Iorque, transplantada, impondo o prestígio dos bares automáticos, dos sapatos amarelos, dos luminosos coloridos. E um ou outro
diálogo entabulado ao acaso, que reproduz, fixa, sem inocência, um traço de
caráter dessa imensa galeria que nenhum latino-americano desconhece, cuja
suprema aspiração é viver sem trabalhar. Sob a rubrica “Elogio da
vagabundagem”, um dos textos tem por título “O engraxate”. Roberto Arlt o
inicia, contando que entrou no local, admirado de que o dono admitisse como
empregado um tal bandoleiro que logo
lhe foi dizendo:- Maldita miséria! Estou
com uma preguiça. Diga, não é
preferível sair para roubar?. Como resposta, a vítima (pois com a escova de
lustrar os sapatos ele quase lhe destroçava os pés), pensando que bela alma de ladrão essa fera tem,
lhe pergunta o que lhe agradaria fazer. Sintético,
definitivo, o homem suspende a escova no ar [...] e como quem quer se livrar de
um peso, responde: - Nada.
Porém,
Roberto Arlt vai, muitas vezes, além das breves descrições e das historietas.
Sabe mostrar-se um crítico irônico ou mordaz diante da mediocridade e das
incongruências que alimentam, quase sempre, o viver do Continente. Quando, por
exemplo, observa o cotidiano dessas moças e moços, pobres empregados do
comércio que passam o dia à espera de fregueses e enquanto isso conversam. Tudo
o que eles tem para dizer, afirma o cronista, podem expressá-lo numa hora e três minutos. Logo o crânio permanece em disponibilidade. Ou quando
constata que as festas são para os ricos, para os que podem pagá-la e quão
pouco é dado ao pobre para que se divirta. Sente pena – diz que a alma lhe cai
até os tamancos – como também dos que se submergem na solidão e que, deveras, não são poucos, perdidos no
universo das cidades: o indivíduo que pelos acasos da fatalidade, se sente
ilhado, só, perdido, o homem que, queira ou não, tem que se apoiar,
exclusivamente em si mesmo e se converter numa espécie de urso solitário, de
fera domada que esconde suas lágrimas
e que, nas praças, oásis da civilização, arrasta sua fadiga [...],
refugiando-se, ao entardecer, como essas
feras que se ocultam para esperar que cicatrizem suas feridas, a aguardar
que a noite chegue e o sono ou a morte.
Aí está, sem dúvida, o romancista, emergindo dos textos que deve ao jornal,
escritos em meio ao ruído agitado das redações e que remetem ao universo social
de Buenos Aires tanto quanto a sua ficção, ao preconizar que da realidade
social nascem os hábitos e os valores, as desigualdades, as opressões e os
conflitos. Neles é que se enovelam os seus testemunhos e Buenos Aires se
mostra, então, plena de vida e sem disfarces nas suas injustiças e nos seus
ridículos.
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