domingo, 16 de fevereiro de 2003

Cidades. Veracruz/Xalapa


            E’ em Veracruz que Laura Díaz vinda, junto com a mãe, de uma propriedade rural, passa a viver, pela primeira vez, com o pai e o irmão. Carlos Fuentes, no seu conhecido propósito de entrelaçar destinos individuais e coletivos, centra nela o fio narrativo de seu romance Los años con Laura Díaz que a Alfaguara publicou em 1999. O relato, dividido em vinte e seis capítulos, se atém a datas precisas que abarcam todo o século XX e cada uma delas se acompanha de um lugar específico – um café, um trem, uma rua, uma cidade – que, necessariamente, não desenha o cenário em que se desenrola a trama porque ela se enovela à revelia do cronológico e do espacial. 
            Assim, a cidade de Veracruz. O terceiro capítulo do romance, “Veracruz:1910”, apenas, fugazmente, faz menção a algum aspecto da cidade que lhe dá o título. A referência a sua situação litorânea e portuária primeiro se faz, en passant, quando a mãe de Laura Díaz estabelece, ao se mudar, os mesmos horários e a mesma ordem da casa paterna que deixara para trás, considerando que por mais inquieto e deslavado que fosse o porto, o sol saía à mesma hora, fosse perto do lago da fazenda, fosse à beira do mar. A ela se acrescenta o registro do narrador sobre a variedade de peixes e mariscos que lhe permitiam sábias combinações culinárias. E se completa na menção ao mar da cidade, lento, plúmbeo, pesado, brilhante; e aos passeios de Laura Díaz com o irmão pelas docas onde ele lhe assinala os trilhos pelos quais deslizavam os furgões, carregados de cadáveres de operários assassinados que foram jogados no mar: deviam pagar a culpa, segundo o ditador de turno, de terem feito greve mantendo-a com valentia. Sem levar em conta a pouca idade da irmã, continua enumerando atos de repressão – lançar rebeldes acorrentados ao mar, fuzilar mineiros, manter trabalhadores em escravidão, prender os que se opõem – contra os que pedem algo tão simples, no seu entender, como democracia, eleições, terra, educação, trabalho.

            No capítulo seguinte, será dito do calor das noites de Veracruz, de suas rápidas tormentas estrondosas a mostrá-la diferentes de Xalapa, cidade serrana de dias cálidos e noites frias, novo local de residência da família de Laura Díaz que deixara para trás seu irmão, fuzilado por conspirar contra o governo federal. Carlos Fuentes diz de sua chuva fina, persistente, a tornar tudo verde e a encher, completando sempre, até as bordas, a represa de onde ascendia a leve bruma da cidade. Depois, a esboça pelas percepções de Laura Díaz: ar frio-chuva e chuva pássaros-mulheres vestidas de negro-jardins belos-bancos de ferro-estátuas brancas pintadas de verde pela umidade-telhados vermelhos-ruas estreitas e empinadas-cheiros de mercado e padarias, pátios molhados e árvores frutíferas, perfume de laranjeiras e fedor de matadouros. É, ainda, menina, nos seus indecisos doze anos, disposta a perder o amadurecimento prematuro que lhe dera a morte do irmão, disposta a ser menina outra vez, a se deixar guiar pelo olfato, fazendo-se de cega para reconhecer o úmido dos parques, a abundância das flores, os cheiros de couro curtido, de algodão, de tintas, de sapataria, de farmácia, de barbearia, de percal, de café fervido e de chocolate espumante.

            Veracruz, insinuada em breves traços, cuja presença irá se impor no enumerar das torpezas que são parte de sua História e da História do Continente. Xalapa, pressentida nos odores, guiando a sua descoberta. Partes de um México penalizado pela opressão, enriquecido pelos seus múltiplos significados de vida. Repúdio e exaltação num fazer constar que o escritor, servindo-se dos recursos que lhe permite a ficção, enraíza nesse mundo que lhe pertence e que revela feito de realidades e de lembranças.

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