Com
um grito mordaz, o motorista, antes do final da viagem, interrompida por
estragos que paralisaram o ônibus, anuncia -A
Heróica!, epíteto pelo qual é conhecida Cartagena de Índias. Gabriel García
Márquez havia abandonado, às pressas, Bogotá, transformada em indescritível
terreno de batalha, no dia 9 de abril de 1948, pelo assassinato de Jorge
Eliécer Gaitán, advogado cujos ataques à oligarquia não eram perdoados,
obedecendo à decisão determinante dos pais de que saísse da capital e fosse
para Sucre. Deixou-se, no entanto, convencer por condiscípulos, diante da
possibilidade de continuar os estudos em Cartagena de Índias. Depois de um
interminável vôo em DC-3, destinado ao transporte de tropas que o levou até
Barranquilla e de uma jornada de seis horas, numa estrada sinuosa, ainda lhe
restava, e a todos os demais viajantes, percorrer a pé, a distância que os
separava da cidade, escondida pela
muralha legendária que a manteve a salvo de gentios e piratas nos seus anos
grandes e tinha acabado de desaparecer sob um emaranhado de ramalhadas
desgrenhadas e longas réstias da campânulas amarelas. Primeiro, lhe
vislumbra as cúpulas das igrejas e dos conventos, no entardecer enevoado.Logo,
ao entrar, pela porta do relógio e vê-la em toda a sua grandeza sente-se renascido e a descreve num belo texto de seu
livro de memórias Vivir para contarla (Buenos Aires, Sudamericana, 2002)
em que se entremeiam algo desse velho passado da cidade e das vivências de seu
pai com as impressões que lhe entraram pelos olhos. Lembra que durante cem
anos, uma ponte levadiça unia a cidade velha com os densos arrabaldes dos
pobres, mas somente durante o dia, pois os espanhóis, temendo agressões, se
isolavam desde as nove horas da noite até o amanhecer; narra os momentos do
portal dos Mercaderes que, no tempo da Colônia, abrigava não somente o comércio
de escravos como o descontentamento com o domínio espanhol e que teve o nome
mudado, devido aqueles que escreviam cartas
de amor e todo tipo de documentos para iletrados pobres e os que copiavam,
às escondidas, obras condenadas pelo Santo Ofício e que acabou por se chamar
Portal dos Doces, quando os pregões proclamavam, em versos, os doces feitos
pelas mulheres que, também, lhe inventavam nomes. O mesmo portal que era, nesse
tempo em que Gabriel García Márquez chega na cidade, um centro vital onde se ventilavam assuntos de Estado nas
costas do governo e o único lugar do mundo onde as vendedoras de fritadas
sabiam quem seria o próximo governador antes que o pensasse, em Bogotá, o
presidente da República. O fascínio que a sua algaravia provoca em Gabriel
García Márquez não será menor daquele
que sente, percorrendo as ruas estreitas
e tortas que não permitiam o trânsito de automóveis e onde ressoavam à
noite, os cascos dos cavalos e o barulho das fichas nas mesas de dominó,
entretendo os moradores da cidade amuralhada. A emoção que sente diante dos
palácios dos marqueses, da catedral sem os sinos, pois o pirata Francis Drake
os levara para fabricar canhões, lhe provoca lágrimas e as árvores murchas e as
estátuas dos próceres se lhe revelam cheias de uma vida que em tudo diferia do
testemunho dos historiadores, fazendo-o entender que à cidade não a sustentavam
suas glórias marciais, mas a dignidade de
seus escombros. Enleia-se na
lembrança do pai que, em outros tempos, na Cartagena de Índias do começo do
século XX, escrevia, para terceiros, cartas de amor, pouco rentáveis, e na do
avô, legando-lhe a admiração por Simon Bolívar, antes de viver, verdadeiramente,
a cidade nessas primeiras horas de surpresas. Entende que esse lugar, uma
taberna a céu aberto onde se comia por bom
preço e melhor companhia, seria um dos lugares
inesquecíveis de sua vida, inserido nessa noite que tinha se tornado diáfana e fresca sob a luz da lua cheia e em que o silêncio parecia uma substância invisível que podia se respirar
como o ar.
E
suas memórias que, ao se prender a fatos, a datas, a lugares, se submetem,
sobretudo, à precisão lingüística, se iluminam, nesse breve texto em que o
romancista se abandona, outra vez, à emoção nascida de Cartagena de Índias.
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