domingo, 9 de fevereiro de 2003

Cidades. Cartagena de Indias.

            Com um grito mordaz, o motorista, antes do final da viagem, interrompida por estragos que paralisaram o ônibus, anuncia -A Heróica!, epíteto pelo qual é conhecida Cartagena de Índias. Gabriel García Márquez havia abandonado, às pressas, Bogotá, transformada em indescritível terreno de batalha, no dia 9 de abril de 1948, pelo assassinato de Jorge Eliécer Gaitán, advogado cujos ataques à oligarquia não eram perdoados, obedecendo à decisão determinante dos pais de que saísse da capital e fosse para Sucre. Deixou-se, no entanto, convencer por condiscípulos, diante da possibilidade de continuar os estudos em Cartagena de Índias. Depois de um interminável vôo em DC-3, destinado ao transporte de tropas que o levou até Barranquilla e de uma jornada de seis horas, numa estrada sinuosa, ainda lhe restava, e a todos os demais viajantes, percorrer a pé, a distância que os separava da cidade, escondida pela muralha legendária que a manteve a salvo de gentios e piratas nos seus anos grandes e tinha acabado de desaparecer sob um emaranhado de ramalhadas desgrenhadas e longas réstias da campânulas amarelas. Primeiro, lhe vislumbra as cúpulas das igrejas e dos conventos, no entardecer enevoado.Logo, ao entrar, pela porta do relógio e vê-la em toda a sua grandeza sente-se renascido e a descreve num belo texto de seu livro de memórias Vivir para contarla (Buenos Aires, Sudamericana, 2002) em que se entremeiam algo desse velho passado da cidade e das vivências de seu pai com as impressões que lhe entraram pelos olhos. Lembra que durante cem anos, uma ponte levadiça unia a cidade velha com os densos arrabaldes dos pobres, mas somente durante o dia, pois os espanhóis, temendo agressões, se isolavam desde as nove horas da noite até o amanhecer; narra os momentos do portal dos Mercaderes que, no tempo da Colônia, abrigava não somente o comércio de escravos como o descontentamento com o domínio espanhol e que teve o nome mudado, devido aqueles que escreviam cartas de amor e todo tipo de documentos para iletrados pobres e os que copiavam, às escondidas, obras condenadas pelo Santo Ofício e que acabou por se chamar Portal dos Doces, quando os pregões proclamavam, em versos, os doces feitos pelas mulheres que, também, lhe inventavam nomes. O mesmo portal que era, nesse tempo em que Gabriel García Márquez chega na cidade, um centro vital onde se ventilavam assuntos de Estado nas costas do governo e o único lugar do mundo onde as vendedoras de fritadas sabiam quem seria o próximo governador antes que o pensasse, em Bogotá, o presidente da República. O fascínio que a sua algaravia provoca em Gabriel García Márquez não será menor  daquele que sente, percorrendo as ruas estreitas e tortas que não permitiam o trânsito de automóveis e onde ressoavam à noite, os cascos dos cavalos e o barulho das fichas nas mesas de dominó, entretendo os moradores da cidade amuralhada. A emoção que sente diante dos palácios dos marqueses, da catedral sem os sinos, pois o pirata Francis Drake os levara para fabricar canhões, lhe provoca lágrimas e as árvores murchas e as estátuas dos próceres se lhe revelam cheias de uma vida que em tudo diferia do testemunho dos historiadores, fazendo-o entender que à cidade não a sustentavam suas glórias marciais, mas a dignidade de seus escombros. Enleia-se na lembrança do pai que, em outros tempos, na Cartagena de Índias do começo do século XX, escrevia, para terceiros, cartas de amor, pouco rentáveis, e na do avô, legando-lhe a admiração por Simon Bolívar, antes de viver, verdadeiramente, a cidade nessas primeiras horas de surpresas. Entende que esse lugar, uma taberna a céu aberto onde se comia por bom preço e melhor companhia, seria um dos lugares inesquecíveis de sua vida, inserido nessa noite que tinha se tornado diáfana e fresca sob a luz da lua cheia e em que o silêncio parecia uma substância invisível que podia se respirar como o ar.
            E suas memórias que, ao se prender a fatos, a datas, a lugares, se submetem, sobretudo, à precisão lingüística, se iluminam, nesse breve texto em que o romancista se abandona, outra vez, à emoção nascida de Cartagena de Índias.

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