domingo, 4 de agosto de 2002

A cidade do Poeta


   E quando põem abaixo, então, a velha casa em que nascemos?
                                                                             Mario Quintana


            Mario Quintana foi um citadino convicto. Nasceu no dia 30 de julho de 1906, em Alegrete, pequena cidade, enraizada nos campos gaúchos, onde passou seus primeiros anos. Em 1929, ele se radicou, definitivamente, em Porto Alegre e os sessenta e cinco anos que lá viveu lhe deram a posse da cidade muito antes que a Câmara de Vereadores lhe tivesse conferido o título de Cidadão Honorário.

            Em 20 de novembro de 1982, no “Letras e Livros”, do Correio do Povo de Porto Alegre, publica “Notas de minha cidade”, parte de seu Caderno H. Embora sob esse título tão preciso na sua idéia de indicar posse, os nove textos, que sob ele se agrupam, não se prendem a Porto Alegre como, por exemplo, no soneto XXI de seu primeiro livro de poemas A rua dos Cataventos em que se refere ao céu de Porto Alegre, dono dos mais belos crepúsculos do mundo ou no poema “O mapa”, parte de Apontamentos de História Sobrenatural, verdadeiro canto de amor pela cidade. Nessas notas, é, sobretudo, a idéia de morar e de viver na cidade em mutação. Dono de uma vivência, que lhe permite comparações, percebe as mudanças o que significa expressar perdas na melancolia de se submeter ao irremediável.

            O primeiro texto, feito de uma frase, sintaticamente, inacabada – Ah! Os ângulos contundentes das construções urbanas... – é um pequeno mundo de sugestão no monossílabo inicial a exclamar significados e nas reticências interrompendo um pensamento que irá, no entanto, se completar nos textos que seguem. Ou na lembrança de um personagem mágico das histórias infantis (vivia no País das Maravilhas ou na cidade de Oz, a precisão aí pouco importa), que morava num sapato. As reticências que se seguem a essa lembrança, sugerindo as mais diversas elucubrações, antecedem a constatação trocista, E nós que moramos em caixas de sapatos! em que a metáfora ao designar um modelo de morar, não é, certamente, das mais elogiosas. Sobretudo para quem se confessa, no texto que segue, um apreciador de casas antigas, de tetos altos. Dessas que o progresso (assim é chamado o fenômeno que tem como condição as transformações da vida social e consiste num aumento de significado e alcance da experiência humana) condena ao desaparecimento para, em seu lugar, erigir edifícios, o que vale dizer, ainda que poeta não o tenha mencionado, outras caixas de sapatos. Daí ele dizer, num poema dedicado a um amigo arquiteto, não gostar da arquitetura nova porque ela não faz casas velhas.... E, sempre a refletir sobre as mudanças arquitetônicas, acaba concluindo que elas estão na origem da instabilidade social e individual. Exemplo disso, ele diz, é o desaparecimento dos cafés onde, entre o cigarro e as conversas, o mundo era arrasado e o sonho, o ideário, a vida se renovavam. Com o café servido no balcão, tomado às pressas, não há tempo para assentar as idéias porque, para isso, é preciso primeiro sentar-se... Observação que, levemente risonha, envolve o seu dizer crítico sobre os novos tempos. Lamento que, por vezes, não se esconde. Assim, mais sofrida e tristonha, a penúltima nota remetendo à inquietude, à sensação de perda que advém ao passar numa rua conhecida e se dar conta de que falta algo: um simples lanço de muro que demoliram e que tijolo a tijolo, fazia parte de nossa construção interior, de nossa instabilidade, em suma. O que, para Mário Quintana, não é absolutamente algo de menor. Da cidade, que ao se transformar se perde, ele é o habitante testemunho a viver a sua realidade mutante e seus próprios sonhos.

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