O
conto está construído em duas partes, cada uma delas com o seu respectivo
título. Na primeira, “O bar”, Magallanes combina com dois matadores, a soldo,
Suárez e Jacinto, a morte de sua mulher. São bem explícitas as razões: a mulher
está doente há quinze anos e se ele vender os seus bens, poderá viajar,
vestir-se bem e freqüentar belos lugares. Ao dar tais explicações aqueles que devem
executar o serviço, afloram-lhe à mente, algumas lembranças da convivência com
ela que se mostra, então, comovente nas atenções que lhe dá. Na segunda parte,
“O dormitório”, lugar em que se efetuará o assassinato, ele chega e a encontra
acordada e, logo nas primeiras linhas, ela se mostra diferente daquela que lhe
aparecera nas lembranças: no seu olhar havia a curiosidade, a frieza, a crítica
e o desprezo que ele já conhecia. Desejou que visse as flores que trouxera,
porém, em vez de prazer, elas provocaram certa
melancolia, certa queixa longínqua, ao dizer que ele devia ter feito
isso dez anos antes. E de reprimendas de um e de outro, de sentimentos
expressos e escamoteados, se estabelece entre eles um diálogo, verdadeira
obra-prima desse fazer literário que é tão peculiar em Carlos Droguett e que
ele não poupa neste conto “Magallanes”, publicado em 1969 na Antologia del
cuento chileno (Barcelona, Ediciones Acervo). Seus recursos – um narrar
sinuoso em que o ritmo se dissolve, por vezes, nas recordações, em que o perfil
de cada um se desenha pelo olhar do outro e pelos gestos de desencontro, em que
o cambiante dos sentimentos vai se delineando no tom da voz e em que as razões
que estão na origem do deteriorar dos sentimentos que, ora se revelam, ora se
mascaram – não espelham apenas a alma de dois seres em conflito, mas, também, a
perfeita evidência de que, humanos que são, jamais se mostrarão transparentes.
Imagens do bar
onde estivera e de seus amigos passam pela cabeça de Magallanes e quando é
encurralado pelo ódio que pode sentir pela mulher deseja que venham logo ou, ao
pensar que, talvez, não cheguem denota uma esperança de que o combinado não
ocorra. Também, fugazes momentos do passado distante (o enterro da mãe quando
era muito pequeno e mal entendia o que se passava, a adolescência nos úmidos
corredores do colégio) e os mais recentes (as pernas da mulher, entrevistas num
dia de vento, a presença dos amantes que ela tivera, na sua casa). Quando
começa a abrir um pacote de presente, ganho há muitos anos, se enternece e à beira de uma mesma lembrança. Ela também olha para ele com
ternura, embora, nessa noite, possa vê-lo como é: com a roupa amassada, a barba
descuidada, fios de cabelo branco, triste e gasto, doente de si mesmo, como ela
diz, com raiva: teus sapatos com os
saltos tortos, tuas calças ordinárias e enrugadas, teu casaco com as lapelas
aureoladas de graxa, tuas mangas esfiapadas, tuas camisas sujas, ensebadas, tua
gravata ignóbil e corrompida, teu hálito envelhecido e espantoso, teus olhos
tristes, espantados e espantosos. Oh! Magallanes, tua cara cheia de feias
sardas e teu cabelo cheio de feias cãs! Na verdade, ele não se percebe
muito diferente: barbudo, sujo, horrivelmente pobre e gasto, com as pernas
desfeitas em vinho, comidas ruins e fumaça de cigarro, com a miséria pregada no corpo.
Sabe que não conseguiu vencer na vida, que
é pobre e triste miserável, que a apunhalou, lentamente, durante anos. Ela,
com sua bela boca de lábios pequenos e carnudos, seus olhos enormes,
sonhadores, sensuais, abertos e tíbios, com olheiras estivais e passionais, ora é vista por ele, tersa e pálida, com esse aspecto cansado que as doenças lhe deram,
ora bonita e tranqüila. Oscilando
entre o amor e o ódio, se move em direção a ela em avanços e recuos: lhe ajeita
o xale no corpo para protegê-la da friagem noturna, quer beijá-la com paixão, a
acaricia distraidamente, beija os seus cabelos, desejando que os matadores
cheguem logo e vai até a janela na expectativa de vê-los chegar.E entre o amor
e o ódio, também ela oscila entre a repulsa que a faz recusar o seu beijo, a
ter os lábios secos e as mãos desfeitas e frias, ou levantar-se da cama e ir
até ele, preocupada ao pensar que ele esteja doente, ou sentir ternura e ansiar
pelos seus beijos ou arrumar os cabelos com a sua faceirice inata e felina.
Contraditórios
sentimentos que se expõem nas vozes – ele fala lentamente e repassando as palavras
ou com voz firme ora com um pouco de desprezo ora triste com ameaçadora
timidez, arrogante e orgulhosa, distante e velada, cansada e raivosa,
arrastada, sonolenta, desabrida e desafiante; e ela, com voz queda e lenta,
cândida e sensual, lúcida e desfeita, séria e triste, num sussurro – porque as
palavras que dizem contém verdades a meias e se enredam nos anseios não cumpridos,
nas ilusões e desejos perdidos, barreiras a mais para separá-los.
Cansada, ela
adormeceu e, olhando a cortina que o
vento da noite empurrava na direção deles, Magallanes também adormece. A
última trégua final terminara e eles irão usufruir da liberdade que lhes chega
junto com o matador e seu revólver. Para um a liberdade que acena para a vida;
para o outro, a liberdade irremediável da morte.

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