domingo, 18 de agosto de 2002

Porfia



          Cantigas do tempo velho foi o seu primeiro livro, editado pela Globo de Porto Alegre em 1959. Apparício Silva Rillo tinha vinte e oito anos e surgia na Literatura do Rio Grande do Sul como uma das grandes vozes da tradição. Neto de estancieiro foi no Campo Experimental de Sermentes, perto de Caí, dirigido por seu pai, um engenheiro agrônomo, que ele se iniciou na vida campeira ao ter contato com os peões, encarregados das tarefas diárias. E o gosto pelos costumes da vida rural gaúcha o fez optar pela vida no interior, indo trabalhar em Nhu Porá, distrito de São Borja onde viveu cinco anos numa convivência com tropeiros, domadores, carreteiros, contrabandistas, jogadores profissionais que se constituíram o embrião de seu mundo poético e de não poucas páginas de prosa. Em 27 de fevereiro de 1982, publica no Suplemento Letras & Livros do Correio do Povo de Porto Alegre, o conto “História de rio” que tem como espaço o rio Uruguai. Inicia a narrativa no momento crítico da ação: Quando a balsa de lenha rebentou [...]. Um pouco antes, os dois tratados para a tarefa – levar a carga de lenha para São Borja – já tinham nadado para uma ilhota que mal aparecia entre as águas do rio. Ele, seu Vicentino, lenhador, costeiro de rio, gaiteiro de bailes machos não era homem que deixasse de cumprir o trabalho pelo qual já fora pago. Agüentou mais uns instantes na balsa carregada de toras e mal teve tempo de amarrar o salva-vidas de corticeira antes de, por sua vez, se atirar na água para lutar. Primeiro com as águas do rio que lhe exaurem as forças, sem vencê-lo.Tampouco, sem deixá-lo vencedor, mas ainda capaz de tentar salvar-se da cruzeira, arrancada das margens, pela enchente. Enroscara-se no seu braço que, procurando um descanso, se apoiara na touceira de vegetação, também, como ele a ser levada pelo rio. E a história que se fazia da coragem e do esforço de um homem de setenta anos, para se salvar das águas barrentas do rio, passa a ser também, a história do medo e da grande calma que a ele deve se sobrepor para evitar o ataque mortal da cobra.

Trata-se de um relato em que a ação é a passividade da espera antes do breve gesto que irá definir o fado. Sua força está nesse personagem valente em seu corpo magro, os nervos bem domados, ligeiro como um gato que pela primeira vez se vê diante da possibilidade da morte, a sentir seus nervos a tremer e sua calma e seu equilíbrio se perderem a revelar um ser humano na sua fraqueza e impotência. E sua beleza, neste contínuo encadear de achados estilísticos onde sobressaem as comparações que, juntamente com a coragem e a honradez a desenhar o personagem e com algum vocábulo – bagual, taura, colorado – típico rio-grandense, deixam ver no texto de Apparício Silva Rillo a presença da tradição própria da Literatura Gauchesca. Pois esse mundo tão perto da natureza – e o rio e o mato – emerge na concepção das vivências: as águas do rio bufam como touro de carne líquida; o coração do homem com medo dispara como potro mordido de morcego; a árvore arrancada pela força da água boiava como estranho bicho; a noite se fechava como baú de couro cru. E Vicentino, o velho taura ainda que mateiro é, na sua visão de mundo, igual aos gaúchos das lides campeiras, a guardar a honra da palavra dada, a enfrentar com serenidade os duros lances da vida. No entanto, ele não adquire contorno de herói diante do insólito inimigo e seu corpo se submete ao medo que sente. Momento em que a narrativa feita, até então, por um narrador de posse da ação e de seu personagem, para expressar a sua fragilidade, emprega uma segunda pessoa singular, talvez como expressão de sua consciência (ou como expressão solidária do narrador), numa seqüência lírica, logo abandonada, para que o relato objetivo e rápido, retome o seu lugar para um epílogo sem indulgência. Mas, a última frase do conto – Por que dormes, Vicentino, velho taura, aguapé de carnes pela flor da enchente?revela, no vocativo de elogio e carinho, na interrogação que recusa aceitar a morte e na metáfora a confundi-lo com a planta viva, pelo fazer literário de um verdadeiro mestre, a emoção que se mantivera contida.

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