Essa
mulher, marcada para morrer que, na primeira parte do conto, se delineia a
partir das lembranças de seu marido, se mostra, nas linhas iniciais da segunda
parte, que tem por título “O dormitório”, como o reverso de uma medalha. No
bar, horas ou minutos antes, fora acertado entre o marido, hesitante, temeroso,
e os matadores, a sua morte. No quarto onde deve se dar o crime, o marido, que
chega, se prepara para cumprir o combinado: amá-la pela última vez e, da janela
aberta para que ela respire o perfume das
acácias mimosas e dos rododentros, certificar-se, pela brasa dos cigarros,
brilhando na esquina, da presença dos cúmplices que assobiarão, para
preveni-lo, antes de subir as escadas de sua casa. As dúvidas que sentira ao
combinar o crime – se livrar da mulher doente há quinze anos e da pobreza ou
desistir de realizar o plano – o tornam frágil e desvalido. As flores que leva
para ela estão amarfanhadas e feias e ele, triste
e ridículo e pobre, impelido ao carinho. Fala com timidez, seus lábios
tremem e se sente mais miserável e mais
triste, esquecido de tudo, afastado de Suárez, do restaurante, das conversas e
das promessas. E tem sede e fome e desejo de lhe dizer o que nunca lhe
tinha dito. Olha para ela com olhos
melancólicos e ansiosos em resposta ao olhar investigador e frio, crítico e depreciativo com que foi recebido.
E, cada um deles, irá marcar a trajetória dos que se presume ser: o que decide
a morte do outro e o que dela será vítima. Uma trajetória feita dos sentimentos
que procuram palavras, mas não alcançam o interlocutor. Permanecem, um e outro,
na própria solidão até serem vencidos, ela pelo sono, ele por uma sonolência
que prolonga os seus murmúrios de queixas e não o impedem de sentir o leve perfume que emanava do corpo dela, um perfume completamente sadio e
limpo, sem doenças, sem ódios, sem
crueldade; tampouco de perceber as próprias lágrimas. O que povoa o seu
sono, o relato entrelaça, então, com a ação dos matadores. São interrogações
(quando ela comprou os remédios? por que não a matei antes?), certezas (quinze anos de tosse, mil injeções de cânfora,
milhões de cafiaspirinas),
esperança (eles não vem, não tem coragem),
confissões ( o amor que sente por ela e o ódio pelos remédios, pela sua própria
pobreza, pelos trajes de festa que ela possuía em paga de seu adultério),
emoções (desejo de chorar de arrependimento e tardia ternura). E não escuta o
ranger da escada e da porta nem o ruído dos passos. Não percebe a luz da
lanterna que varria o chão e subia pela colcha. Quando no sonho,
rodeado das gravatas que dela recebera de presente, se dá conta que não era tão
pobre e ri, acorda assustado e vê o matador e o revólver. Apenas tem tempo de
cobrir a nudez da mulher e os três golpes bem dados, bem preparados o atingem
de lado. Pensa que os matadores estavam fazendo o combinado, feri-lo para não
levantar suspeitas e sente o cheiro do sangue. Quis se apegar no agressor para
recomendar que fizesse tudo muito bem para não provocar desconfianças. Mas
outro golpe o derrubou. Lampejos de lembranças de sua infância lhe vêm à mente
e, também, os primeiros automóveis que chegavam para buscar sua mulher. Então,
o matador constata que já está morto e que a mulher, despida, se agarrara na
cortina e olhava para a cama com olhos imensos antes de fugir. O matador pôde
vislumbrar, na luz da noite, “seu belo
torso de mulher jovem e tentadora.
Não parecia doente.
O
tema da morte é, sem dúvida, caro ao chileno Carlos Droguett o que, face à
freqüência com que aparece nos seus textos, não deixou de intrigar os críticos
e levar os seus entrevistadores aquestionar-lhe, muitas vezes, os
motivos.
Neste
conto “Magallanes”, publicado na Antologia del cuento chileno (Barcelona,
Ediciones Acervo, 1969), trata-se de um assassinato por encomenda. Estruturado
em dois tempos, o da elaboração do plano e o da ação, entre eles se insere o
diálogo de Magallanes e sua mulher a diminuir a agilidade narrativa. Em
contrapartida, revelam-se fragmentos de vida e desnudam-se os sentimentos em
seqüências que tornam o que parecia muito simples – o assassinato de uma jovem
mulher doente, há quinze anos, visando o usufruto de seus bens – em algo cheio
das nuanças que são tão próprias do sentir dos homens e que apenas os grandes
conhecedores de almas podem decifrar. Regidos pelas paixões, Magallanes e sua
mulher ignoram limites na obtenção de seus desejos, movendo-se num mundo
lamentável de pobreza, de enfermidade, de mentiras que se mostra propício à
violência que uma estrutura social desregrada pode originar.
Porém,
nessa visão melancólica do mundo que dá a conhecer, Carlos Droguett faz, no
entanto, emergir a sedução da vida na fugaz visão da figura feminina que o
destino ou o olhar concupiscente do matador poupou da morte.

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