domingo, 14 de julho de 2002

Retrato de Pedro


            Primeiro foi sua infância em Belmonte a escutar a lenda que explica o seu nome e a posse de tantas terras, a brincar em correrias pelo castelo ou em cercos imaginários à torre de Centum Cellas, um dos mais enigmáticos edifícios dessas paragens perto da Guarda, a cruzar pelas pedras, o rio Zêzere, de águas que rolavam doces no verão. Depois, ainda quase menino, o seu tempo de aprender, em Lisboa, os desejos de ação, colmados com o batismo de fogo no Marrocos e a sagração de cavaleiro da Ordem de Malta. E, com a ascenção de Dom Manuel ao trono de Portugal, ser escolhido para realizar a missão que consolidaria a presença portuguesa na Índia.

            Nau capitânia, Prêmio Casa de las Américas, 2001, relata a viagem feita sob o seu comando, desde a cerimônia que antecedeu o embarque nas treze naus até o seu término, no dia 21 de julho do ano seguinte. Walter Galvani, neste seu sétimo livro, publicado pela Record em 2000, obedecendo a fatos comprovados em documentos, declarações, citações, cartas e registros oficiais, como bem o diz ao historiar a sua própria navegação em busca da biografia de Pedro Álvares Cabral e, também, às intuições advindas das lacunas e sugestões, conteúdos tácitos ou implícitos daquilo que a história oficial muitas vezes disfarça, para delinear um retrato do descobridor que o humaniza, tanto quanto é possível, numa imagem que o tempo e a crônica de seu feito petrificaram.

            Assim, de Pedro Álvares Cabral, que parte de Lisboa no dia 9 de março de 1500 e navega dezesseis meses, serão relatados os percalces e as proezas, que não foram poucos nem pequenos, e, também, algo de sua idiossincrasia nessa outra aventura cheia de armadilhas do viver na corte tão perigosa como o tombadilho de seu navio, a enfrentar ventos e calmarias e a difícil arte de se relacionar com os homens. Porém, será na solidão das dúvidas e dos medos, na tristeza e nos desenganos que o acompanharão pelo resto de seus dias que ele se aproximará da fragilidade dos humanos, iluminados, às vezes, pela felicidade, mas à mercê dos fados, pois são eles que determinam a medida das infelicidades e das agruras. Delas, Pedro Álvares Cabral não foi poupado nessa marca em seu corpo, deixada pela febre sem cura, contraída na África a atormentá-lo a cada quatro ou cinco dias, provocando um desconforto – visão turvada, dor de cabeça, suor frio, febre e irritabilidade – que tenta ocultar dos demais, a querer fugir, fugir, encerrar-se, silenciar num canto como um animal ferido. No seu navio, não consegue ficar sozinho e não se permite queixas, mas, ao acometer-lhe a dor, nada mais ouvia com paciência, nem lhe prendia a atenção. Todavia, se algo o chamava à realidade, entendia que era preciso voltar ao convés, ser visto, transmitir confiança, ouvir o que tinham a dizer os subordinados, mostrar-se forte. Tampouco, da sucessão de desconsolos, ao ser esquecido pelo rei que nunca mais o chamou para lhe atribuir uma nova travessia, depois da recusa em partilhar do comando com outro capitão na viagem que se seguiria, confiada, então, a Vasco da Gama.

            Os anos foram passando e ele a viver entre a espera da palavra real e as lembranças do que vivera. Atormentado pelas dúvidas e pela incerteza quanto as suas decisões: se deveria ter procurado melhor o navio de Vasco de Ataíde que se perdera logo no início da viagem; se fora impaciente demais no castigo que determinara, em nome do rei, pela morte de cinqüenta e quatro portugueses em Calicute, bombardeando, durante quatro horas a cidade, esparramando destruição, reduzindo a pedaços e cacos retorcidos pessoas, cavalos, edifícios, até elefantes, levando vingança e morte.

            E, martirizado, se pergunta se o exílio a que está condenado na sua própria terra, ao ser privado da atenção do rei, não é um castigo merecido. Queixas a lhe alimentarem os dias que poderiam ser de sossego, vividos nas suas terras, junto com Isabel, sua mulher e os filhos: breves monólogos a se inserirem no relato e que o mostram cordato, arrependido num perfil que se completa nas seqüências narrativas quando dizem ter ele piedade dos degredados que deve deixar nas costas visitadas; quando aconselha os marinheiros a não cometerem hostilidades para com os naturais da terra, ao desembarcarem na nova terra; ao mandar pôr coxins sob a cabeça dos índios que pernoitaram no seu navio ; ao reunir os melhores homens a bordo para, diante dos mapas e portulanos, trocar idéias sob a luz das estrelas e das tochas numa simplicidade que não eludia a sua postura de príncipe.

Um Pedro Álvares Cabral que a linguagem escorreita, contida, de Walter Galvani recria para fazê-lo chegar novamente ao Brasil. Desta vez para ser descoberto.

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