Primeiro
foi sua infância em Belmonte a escutar a lenda que explica o seu nome e a posse
de tantas terras, a brincar em correrias pelo castelo ou em cercos imaginários
à torre de Centum Cellas, um dos mais enigmáticos edifícios dessas paragens
perto da Guarda, a cruzar pelas pedras, o rio Zêzere, de águas que rolavam doces no verão. Depois, ainda quase menino, o seu
tempo de aprender, em Lisboa, os desejos de ação, colmados com o batismo de
fogo no Marrocos e a sagração de cavaleiro da Ordem de Malta. E, com a ascenção
de Dom Manuel ao trono de Portugal, ser escolhido para realizar a missão que
consolidaria a presença portuguesa na Índia.
Nau capitânia, Prêmio Casa de las Américas, 2001,
relata a viagem feita sob o seu comando, desde a cerimônia que antecedeu o
embarque nas treze naus até o seu término, no dia 21 de julho do ano seguinte.
Walter Galvani, neste seu sétimo livro, publicado pela Record em 2000, obedecendo
a fatos comprovados em documentos,
declarações, citações, cartas e registros oficiais, como bem o diz ao
historiar a sua própria navegação em busca da biografia de Pedro Álvares Cabral
e, também, às intuições advindas das lacunas
e sugestões, conteúdos tácitos ou implícitos daquilo que a história oficial muitas vezes disfarça, para delinear
um retrato do descobridor que o humaniza, tanto quanto é possível, numa imagem
que o tempo e a crônica de seu feito petrificaram.
Assim,
de Pedro Álvares Cabral, que parte de Lisboa no dia 9 de março de 1500 e navega
dezesseis meses, serão relatados os percalces e as proezas, que não foram
poucos nem pequenos, e, também, algo de sua idiossincrasia nessa outra aventura
cheia de armadilhas do viver na corte tão perigosa como o tombadilho de seu
navio, a enfrentar ventos e calmarias e a difícil arte de se relacionar com os
homens. Porém, será na solidão das dúvidas e dos medos, na tristeza e nos
desenganos que o acompanharão pelo resto de seus dias que ele se aproximará da
fragilidade dos humanos, iluminados, às vezes, pela felicidade, mas à mercê dos
fados, pois são eles que determinam a medida das infelicidades e das agruras. Delas,
Pedro Álvares Cabral não foi poupado nessa marca em seu corpo, deixada pela
febre sem cura, contraída na África a atormentá-lo a cada quatro ou cinco dias,
provocando um desconforto – visão turvada, dor de cabeça, suor frio, febre e
irritabilidade – que tenta ocultar dos demais, a querer fugir, fugir, encerrar-se, silenciar num canto como um animal ferido. No seu navio, não consegue ficar
sozinho e não se permite queixas, mas, ao acometer-lhe a dor, nada mais ouvia com paciência, nem lhe
prendia a atenção. Todavia, se algo o chamava à realidade, entendia que era preciso voltar ao convés,
ser visto, transmitir confiança, ouvir o
que tinham a dizer os subordinados, mostrar-se forte. Tampouco, da sucessão
de desconsolos, ao ser esquecido pelo rei que nunca mais o chamou para lhe
atribuir uma nova travessia, depois da recusa em partilhar do comando com outro
capitão na viagem que se seguiria, confiada, então, a Vasco da Gama.
Os
anos foram passando e ele a viver entre a espera da palavra real e as
lembranças do que vivera. Atormentado pelas dúvidas e pela incerteza quanto as suas
decisões: se deveria ter procurado melhor o navio de Vasco de Ataíde que se
perdera logo no início da viagem; se fora impaciente demais no castigo que
determinara, em nome do rei, pela morte de cinqüenta e quatro portugueses em
Calicute, bombardeando, durante quatro horas a cidade, esparramando destruição, reduzindo a pedaços e cacos retorcidos
pessoas, cavalos, edifícios, até elefantes, levando vingança e morte.
E,
martirizado, se pergunta se o exílio a que está condenado na sua própria terra,
ao ser privado da atenção do rei, não é um castigo
merecido. Queixas a lhe alimentarem os dias que poderiam ser de sossego,
vividos nas suas terras, junto com Isabel, sua mulher e os filhos: breves
monólogos a se inserirem no relato e que o mostram cordato, arrependido num
perfil que se completa nas seqüências narrativas quando dizem ter ele piedade
dos degredados que deve deixar nas costas visitadas; quando aconselha os
marinheiros a não cometerem hostilidades para com os naturais da terra, ao
desembarcarem na nova terra; ao mandar pôr coxins sob a cabeça dos índios que
pernoitaram no seu navio ; ao reunir os melhores homens a bordo para, diante
dos mapas e portulanos, trocar idéias sob a luz das estrelas e das tochas numa
simplicidade que não eludia a sua postura de príncipe.
Um Pedro
Álvares Cabral que a linguagem escorreita, contida, de Walter Galvani recria
para fazê-lo chegar novamente ao Brasil. Desta vez para ser descoberto.

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