O
relato se faz em dois tempos e em dois espaços, introduzidos pelas palavras “O
Bar” e “O dormitório”. Tem por título um nome próprio, Magallanes e foi
publicado no segundo tomo da Antologia do conto chileno, em
Barcelona, pela Editora Ediciones Acervo, em 1969. No bar, esse recinto onde,
segundo as primeiras palavras do conto, havia
muita fumaça, muito calor, muito ruído,
Magallanes está a fazer um acerto: o assassinato de sua mulher. Dialoga com os
matadores, queixando-se com tristeza, com
pesar, quase com terror, sentindo-se trêmulo, cheio de dúvidas sobre a
maneira com se dará a morte, se poderá ser numa outra noite, se irá tudo dar
certo. Suárez, o de olhos amarelados que
não pestanejam, a buscar detalhes, profissionalmente convicto de que é necessário perguntar muito quando é
preciso fazer um trabalho perigoso. São perguntas cruéis – qual é a idade? desde quando está doente? onde? a que horas? – e as respostas de Magallanes
advém, concisas: 35, 38 anos, Está enferma há quinze anos, Segundo andar, há um longo corredor no fim
da escada, qualquer hora, às dez e meia seria uma boa hora. Mas
lhe trazem à mente, retalhos da vida compartilhada. O momento em que se
conheceram numa festa de casamento e ela era gordinha e cheia de risos e tinha um lindo cabelo castanho; o seu
gesto de tornar o rosto em direção da porta quando lhe escutava os passos,
subindo a escada; ou essa dedicação de se
levantar pálida e delgada, no
escuro, para lhe perguntar, quando tossia, se estava doente; ou o esforço de
alongar o braço para alcançar as pílulas e o copo de água; o tempo cheio de
paixão e esperança, de maravilhosos projetos. Certo do que deseja – viagens,
restaurantes elegantes, o limpo convés de
um barco de luxo, uma noite completamente silenciosa naquele
hotel construído na beira do mar sobre as
rochas – os sentimentos, no entanto, se lhe embaralham. Quando diz aos
matadores que ela lhe dá náuseas e
especialmente pena, logo, confessa que ainda gosta um pouco dela. Na ânsia
de viver, dos seus trinta anos, levado pelo miserável
desejo de viver, negocia a vida da mulher, pelo preço de umas jóias e de
algum dinheiro, desejando, porém, que os matadores demorem a chegar ou que não
entrem na casa ou, se entrem, não cometam o assassinato. Ou querendo pedir que
não mais façam o que fora tratado ou pensando na possibilidade de matar o
matador em vez de ficar passivo e cúmplice.
Como soe
acontecer com os personagens de Carlos Droguett, Magallanes parece ser apenas
esboçado na menção a seus belos dentes e às suas costas enfermiças, frágeis, dispostas sempre à pneumonia ou à tuberculose. Esboço que se amplia no diálogo mantido
com Suárez, pois Jacinto, o outro matador, de
cara tropical e brilhosa, mal enuncia uma frase (Serás feliz, desejamos tanto que o sejas...) na sua voz pastosa
e úmida, arrastada. Nas palavras que diz, ele se desvenda, reafirmando a
maestria do escritor chileno, nesse mistério de ser humano, cujas facetas
hesitam entre o bem e o mal que tênues fronteiras separam. Indefeso, ele
próprio, diante de quem se atribui direitos de vida e de morte sobre um seu
semelhante, transpira, encolhe as pernas como se as escondesse, como se protegesse
todo o seu ser para não deixá-lo à mercê de Suárez, embora possa sorrir com
frieza e crueldade ao mencionar o correto assassinato que pretendiam. Suárez,
que reconhece ter ele tido muita paciência nesses quinze anos, demasiados para
os seus frágeis ombros, que o acusa de ser sentimental e sonhador, fala e ri
com suavidade e finura na voz sarcástica e ingênua que se revela quase triste
ao aventar que talvez ela se defenda,
é um matador que se rege por princípios. A hombridade que exige coragem e um
comportamento amoroso propiciado condignamente à mulher que irá morrer. Ordena mas
tu a farás dormir, serás leal e bom. Vais
amá-la e isto não te custará muito, será tua última noite e compreende: estás triste e é natural estar triste e a tua salvação, quanto mais triste e
desgraçado pareças, melhor para todos nós. Considera por terminado os
acertos, se encaminha para a porta do bar, deixando Magallanes a olhar para a
mesa onde estavam os pratos e os copos e onde, no bojo de uma colher, uma colherada de luz brilhava triste.
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