domingo, 7 de julho de 2002

Ausência


Sem que eu me lembre disso, sem saber que a olhei com meus olhos, morreu minha mãe, dona Rosa Basoalto. Eu nasci no dia 12 de julho de 1904 e, um mês depois, em agosto, esgotada pela tuberculose, minha mãe já não existia. Pablo Neruda. Confesso que vivi.           

Em 1980, a Seix Barral de Barcelona, publicou El rio invisible, a poesia e a prosa dos primeiros anos de Pablo Neruda, livro que abriga a única fotografia de sua mãe, Rosa Basoalto de Reyes, morta dois meses e dois dias depois de seu nascimento. Entre os poemas que fazem parte desse livro, dois lhe são dedicados e, embora, possam ser ingênuos, segundo expressão de Volodia Teitelboim (Neruda, Editorial Sudamericana Chilena, 1996), trazem bem forte a presença do inconfundível lirismo que nunca deixará de marcar a sua poesia. Um dos poemas tem por título “Luna”: Cuando nací mi madre se moría / com una santidad de ánima en pena. / Era su cuerpo transparente. Ella tenia / bajo la carne un luminar de estrellas./ Ella murió. Y nací. Por eso llevo/ un invisible río entre las venas, / un invencible canto de crepúsculo / que me enciende la risa y me la hiela. No primeiro verso, como mais tarde e, tantas vezes, a sua história, a começar sob o signo trágico da orfandade. Nos três seguintes, o querer esboçar um perfil cuja visão lhe foi negada, o leva a uma idealização em que as expressões santidade, corpo transparente, luz de estrelas traduzem uma singeleza que o trágico signo – morrer/nascer – irá amenizar tanto quanto os versos  seguintes em que os recursos estilísticos anunciam o domínio da palavra que estará, sempre, a serviço de uma visão de mundo, submissa aos sentimentos e as paixões. Porque, se nos primeiros versos fala da imagem da mãe que ele próprio constrói a partir do nada, nos quatro últimos, irá dizer do seu sofrimento diante da ausência. Volta-se para si mesmo e se refere a esse rio invisível que lhe corre nas veias que, talvez, numa linguagem metafórica, signifique a imensidão de lágrimas a serem vertidas e a esse canto pleno da tristeza de um fim do dia. E o último verso do poema, como a síntese de um soneto na confissão barroca, contraditória, de um riso que se expande e que se gela: alegria possível de existir como passível de ser destruída.

            “Humildes versos para que descanse mi madre” traduz, na primeira palavra do título, a timidez do poeta, quiçá, a se achar indigno de seu tema. Inicia o seu verso com o vocativo, Madre mía, num desejo de diálogo que o destino determinou impossível: Madre mía, he llegado tarde para besarte / y para que com tus manos puras me bendijeras; / ya tu paso de luz iba extinguiéndose / y habías comenzado a volver a la tierra. / Pediste poco en este mundo, madre mía./ Talvez este puñado de violetas mojadas / está de más entre tus dulces manos / que no pidieron nada. Dirige-se a ela, no lamento impotente do gesto que não se realizou, dos bons augúrios que teria almejado receber. Sujeita-se à realidade do seu desaparecimento e, outra vez, busca o diálogo no vocativo madre mía que se repete, agora, penalizado com esse quase nada que a vida lhe deu, imaginando uma interlocutora que apenas existe na sua emoção.

            Muitos anos mais tarde, Pablo Neruda volta ao lugar em que nasceu em busca de alguma lembrança que de sua mãe tenha ficado, de alguma história que sobre ela alguém possa contar. Uma velha vizinha, que a havia conhecido, lhe revela uma ou outra coisa e diz que ela adorava poesia, que passava muitas horas a ler. E lhe oferece a fotografia que, pela primeira, vez revela ao poeta a imagem de sua mãe. Volodia Teitelboim que o acompanhava nessa volta às origens, testemunha: Ele olha comovido o pobre âmbito doméstico. Recorre a desmantelada e empoeirada casa provinciana onde nasceu. É uma chave enferrujada para penetrar nas suas origens.

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