Sem que eu me lembre disso, sem saber que a
olhei com meus olhos, morreu minha mãe, dona Rosa Basoalto. Eu nasci no dia 12
de julho de 1904 e, um mês depois, em agosto, esgotada pela tuberculose, minha
mãe já não existia. Pablo Neruda. Confesso que vivi.
Em 1980, a
Seix Barral de Barcelona, publicou El
rio invisible, a poesia e a prosa dos primeiros anos de Pablo Neruda, livro
que abriga a única fotografia de sua mãe, Rosa Basoalto de Reyes, morta dois
meses e dois dias depois de seu nascimento. Entre os poemas que fazem parte
desse livro, dois lhe são dedicados e, embora, possam ser ingênuos, segundo expressão de Volodia Teitelboim (Neruda, Editorial Sudamericana
Chilena, 1996), trazem bem forte a presença do inconfundível lirismo que nunca
deixará de marcar a sua poesia. Um dos poemas tem por título “Luna”: Cuando nací mi madre se moría / com una
santidad de ánima en pena. / Era su cuerpo transparente. Ella tenia / bajo la carne un luminar de estrellas./ Ella murió. Y
nací. Por eso llevo/ un invisible río entre las venas, / un invencible canto de
crepúsculo / que me enciende la risa y me la hiela. No primeiro verso, como
mais tarde e, tantas vezes, a sua história, a começar sob o signo trágico da
orfandade. Nos três seguintes, o querer esboçar um perfil cuja visão lhe foi
negada, o leva a uma idealização em que as expressões santidade, corpo transparente,
luz de estrelas traduzem uma singeleza que o trágico signo – morrer/nascer –
irá amenizar tanto quanto os versos
seguintes em que os recursos estilísticos anunciam o domínio da palavra
que estará, sempre, a serviço de uma visão de mundo, submissa aos sentimentos e
as paixões. Porque, se nos primeiros versos fala da imagem da mãe que ele
próprio constrói a partir do nada, nos quatro últimos, irá dizer do seu
sofrimento diante da ausência. Volta-se para si mesmo e se refere a esse rio invisível que lhe corre nas veias que,
talvez, numa linguagem metafórica, signifique a imensidão de lágrimas a serem
vertidas e a esse canto pleno da tristeza de um fim do dia. E o último verso do
poema, como a síntese de um soneto na confissão barroca, contraditória, de um
riso que se expande e que se gela: alegria possível de existir como passível de
ser destruída.
“Humildes
versos para que descanse mi madre” traduz, na primeira palavra do título, a
timidez do poeta, quiçá, a se achar indigno de seu tema. Inicia o seu verso com o vocativo, Madre mía, num desejo de diálogo que o
destino determinou impossível: Madre mía,
he llegado tarde para besarte / y para que com tus manos puras me bendijeras; /
ya tu paso de luz iba extinguiéndose / y habías comenzado a volver a la tierra.
/ Pediste poco en este mundo, madre mía./ Talvez este puñado de violetas mojadas / está de más entre tus dulces
manos / que no pidieron nada. Dirige-se a ela, no lamento impotente
do gesto que não se realizou, dos bons augúrios que teria almejado receber.
Sujeita-se à realidade do seu desaparecimento e, outra vez, busca o diálogo no
vocativo madre mía que se repete,
agora, penalizado com esse quase nada que a vida lhe deu, imaginando uma
interlocutora que apenas existe na sua emoção.
Muitos
anos mais tarde, Pablo Neruda volta ao lugar em que nasceu em busca de alguma
lembrança que de sua mãe tenha ficado, de alguma história que sobre ela alguém
possa contar. Uma velha vizinha, que a havia conhecido, lhe revela uma ou outra
coisa e diz que ela adorava poesia, que passava muitas horas a ler. E lhe
oferece a fotografia que, pela primeira, vez revela ao poeta a imagem de sua
mãe. Volodia Teitelboim que o acompanhava nessa volta às origens, testemunha: Ele olha comovido o pobre âmbito doméstico.
Recorre a desmantelada e empoeirada casa provinciana onde nasceu. É uma chave
enferrujada para penetrar nas suas origens.
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