domingo, 26 de maio de 2002

Manuela Sáenz.1


Manuela, brasa e água...
Dos versos de Pablo Neruda           

No seu livro Neruda, publicado na Espanha em 1984 e reeditado na Argentina, Cuba e Chile, Volodia Teitelboim, além das detalhadas referências às circunstâncias biográficas do poeta com que, na condição de íntimo amigo, conviveu durante quarenta anos, comenta, muitas vezes, os seus poemas. Ou revelando-lhe os motivos, o momento de sua gênese ou em análises que demonstram o estudioso da obra nerudiana nos abundantes artigos e ensaios que lhe dedicou.

            No capítulo 132, “Uma heroína esquecida”, se refere à viagem de Pablo Neruda a bordo do Itália, em janeiro de 1958, mencionando breves linhas de uma carta que o poeta, nessa ocasião, lhe escreveu e em que diz estar a escrever conferências e um longo poema sobre Manuelita Sáez, a amada de Simão Bolívar. No porto de Paita, pequeno povoado da costa peruana, breve escala do navio, ele desembarca e procura pelo seu túmulo. Ninguém sabe dela, ou do lugar em que repousa. Essa busca vã e o querer redimi-la do olvido são expresso em “A insepulta de Paita”, parte de seu livro Cantos cerimoniales, publicado em 1961, pela Losada de Buenos Aires.
 

            O poema é feito de um Prólogo e de vinte e duas estrofes de estruturas diversas quanto ao número de versos (a décima, por exemplo tem apenas três; a vigésima segunda, cinqüenta e quatro) e quanto à forma (ora narrativo, ora descritivo, ora confessional). O seu começo é como se fora uma narrativa da viagem que se inicia em Valparaíso e se faz num Pacífico, duro caminho de punhais. Na segunda estrofe, presente esse espaço, Paita, que abriga a mulher morta e o desejo do poeta de tocar a terra que a esconde. Pelas suas palavras, desenha-se o povoado nas balaustradas velhas, nas sacadas azuis; eleva-se o seu cheiro de perfume audaz; ostentam-se as frutas, vislumbram-se as índias sentadas sob o zumbir das moscas e o dia nublado. Nem o menino, nem o homem, nem o ancião interrogados, respondem onde havia falecido Manuelita, onde tinha sido a sua casa, onde finalmente, repousava.E, nem os montes, o manancial, o rio e o mar, também interrogados, nada lhe respondem. Mas, o poeta, se não encontra o lugar em que Manuelita Sáez se abriga (tu que não tens um túmulo), a faz renascer num desenho que lhe traça o corpo de delgados pés espanhóis, de pequena mão morena, de cadeiras claras de cântaro de cabelos negros e seios de magnólia. E lhe retrata a alma: libertadora enamorada, suprema flor empunhada pela ternura e a dureza, guerrilheira, libertadora, contrabandista pura, idolatrada desrespeitosa. E lhe define o destino de sepultada em plena vida, insepulta bravia, corola destroçada pela areia e pelo vento, forma calada pelo pó de Paita. Paita que ele torna a descrever, incrustada na costa, com seus cais podres, suas escadas quebradas, seus fardos de algodão, suas casas abandonadas, seus paredões rotos onde alguma bouganville/ lança na luz o jato/ de seu sangue vermelho. Paita, povoada de silêncio, De todo o silêncio do mundo e escolhida por Manuela Sáez como lugar de seu exílio. E o poeta não compreende e quer saber e pergunta e torna a perguntar o porquê da escolha dessa terra miserável, dessa luz desamparada, dessa sombra sem estrelas, desse lugar onde morrer. Tampouco obtém respostas, tampouco encontra a lápide de Manuelita Sáez: Manuelita insepulta, /desfeita nas atrozes, duras /soledades.

            E seu barco se afasta de Paita que ficou perdida nas suas areias, para o esquecimento.

            Nas vinte e duas estrofes que lhes dedica, os versos que falam do mar navegado, de paisagens desoladoras, das frutas do mercado de Paita, de exílios e de escolhas de amores perdidos, de imagens fugazes. Falam do anseio do poeta em decifrar esse enigma em que se transformou Manuela Sáez nos dias de exílio e que a escondem do mundo. Por isso, desembarca em Paita e lhe persegue a figura ausente. A perplexidade diante do vazio, a evocação apaixonada da figura feminina e o anseio de que seus ossos tenham nome se entrelaçam no sentir do poeta e fazem de sua romaria, nesse povoado perdido uma cerimônia que o seu canto imortalizou.

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