domingo, 5 de maio de 2002

Academicismos e iconoclastia


            Em 1995, a Universidade de Ottawa e a Embaixada do Chile no Canadá, organizaram um Simpósio Internacional para comemorar o qüinquagésimo aniversário da outorga do Prêmio Nobel a Gabriela Mistral. Alguns dos trabalhos, então apresentados, foram reunidos por Gaston Lillo e se constituem, segundo ele, além das consabidas homenagens em eventos desse tipo, o resultado de trabalhos que se inscrevem em novas metodologias e buscam uma revisão da literatura chilena. O que, em relação a Gabriela Mistral é sobremodo importante, pois, embora os estudos que lhe tem sido dedicados – releitura e revisão de sua obra – a partir dos anos 70, mostrem o interesse despertado, é inegável que muitos aspectos de sua produção poética e de seus textos jornalísticos permanecem desconhecidos. Os doze trabalhos que fazem parte de Re-leer hoy a Gabriela Mistral ao enfocar temas ainda não estudados, trazem à baila o que não havia sido percebido nos seus textos: o uso do folclore a se constituir mais uma fuga da racionalidade do que inocência ou ingenuidade; a opção pelo arcaico face à modernidade instaurada pelos brasileiros no década de 20; a  inserção de sua obra na Literatura feminina do começo do século; a relação de sua poesia com a infância, transcorrida no pequeno povoado onde nasceu; a postura política “acomodada”, principalmente quando de sua permanência no México. Trata-se de um conjunto de textos acadêmicos e como tais, apoiados em escritos da poetisa e em leituras que as referências bibliográficas testemunham. Um deles, no entanto, se afasta dos moldes usuais, aconselháveis ou imprescindíveis, exigidos pelas instituições. Optando, como assinala, Gastón Lillo, por um texto que se propõe desmistificar com ironia a imagem pública da autora, construída pela cultura hegemônica do Chile numa época em que o processo de modernização do país (afirmação do novo Estado/Nação) requeria signos inequívocos de identidade nacional, José Leandro Urbina, em “Memória de lectura” mostra a Gabriela Mistral de suas lembranças: primeiro a da mulher sorridente a acenar para os amontoados de crianças que da calçada agitam bandeirinhas e talvez tenham gritado “Viva o Prêmio Nobel!”, “Viva Chile!”, quando ela passa em carro aberto, desfilando por uma avenida de Santiago. Logo, menciona sua professora do primário que se penteia como a poetisa, faz o seu panegírico e em torno à bandeira hasteado no pátio, conduz uma roda de crianças para cantar, talvez, a mais conhecida das estrofes de Gabriela Mistral: Dá-me a tua mão e dançaremos/ dá-me a tua mão e me amarás./ Como uma só flor nós dois seremos,/ como uma só flor e nada mais....É o tempo em que as crianças não sabiam onde estava a Suécia e lhes diziam que a poetisa era mãe de todas as crianças chilenas. Depois, já podem perceber a chegada de outros temas a substituir aqueles que a escola, a religião e o Estado estipulavam como universo único. E descobrem Pablo Neruda e que ele, sim, sabia de estados de alma, de rebeldias e dos poemas necessários para andar por este mundo; e descobrem, também, Marx, Lenine e o Manifesto Comunista a deixarem ver o quanto a poesia de Gabriela Mistral se alienava, ainda que fazendo versos às crianças pobres, da realidade que o Sistema, do qual ela passara a fazer parte, não tinha interesse em mudar. E José Leandro Urbina questiona a  religiosidade da poetisa,  a sua opção partidária, a sua incapacidade em perceber que o opressor precisa dos oprimidos para conservar privilégios; e não se furta ao sarcasmo, ao se referir às pequenas mãos que mendigam dos versos comovidos, convicto de que a revolução será vitoriosa quando essas mãos que pedem carreguem um fuzil.
            Foi, então, para ele e para a sua geração o que define como o tempo de plantar, de destruir e edificar, de abraçar e de rir. Quimeras da juventude que no espaço religioso e elitista e prepotente que domina o Continente são impedidas de vingar. E no Chile, logo veio o tempo da dispersão, das lágrimas e do silêncio que os anos da ditadura largamente prolongou.
            E o depoimento se completa: fora do Chile, precisou responder sobre a presença da mulher na literatura chilena. É quando recupera a figura de Gabriela Mistral, mulher e professora, prêmio Nobel de Literatura, em leituras que desafiam interpretações e o ensinam a respeitar uma poesia que, ao ser usada como expressão da classe dominante, teve um sentido por ela modelado a sobrepujar, por vezes, outros mais verdadeiros e profundos. Assim, Re-eler hoy a Gabriela Mistral se constitui um aporte nessa, talvez, necessária aproximação de sentidos que somente serão conhecidos a partir de estudos que, hoje, pelas transformações metodológicas e ideológicas ocorridas, estão a permitir leituras que assim como interrogam, podem oferecer respostas e mostrar facetas até então ignoradas.

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