Em
1995, a Universidade de Ottawa e a Embaixada do Chile no Canadá, organizaram um
Simpósio Internacional para comemorar o qüinquagésimo aniversário da outorga do
Prêmio Nobel a Gabriela Mistral. Alguns dos trabalhos, então apresentados,
foram reunidos por Gaston Lillo e se constituem, segundo ele, além das
consabidas homenagens em eventos desse tipo, o resultado de trabalhos que se inscrevem
em novas metodologias e buscam uma revisão da literatura chilena. O que, em
relação a Gabriela Mistral é sobremodo importante, pois, embora os estudos que
lhe tem sido dedicados – releitura e revisão de sua obra – a partir dos anos
70, mostrem o interesse despertado, é inegável que muitos aspectos de sua
produção poética e de seus textos jornalísticos permanecem desconhecidos. Os
doze trabalhos que fazem parte de Re-leer
hoy a Gabriela Mistral ao
enfocar temas ainda não estudados, trazem à baila o que não havia sido
percebido nos seus textos: o uso do folclore a se constituir mais uma fuga da
racionalidade do que inocência ou ingenuidade; a opção pelo arcaico face à
modernidade instaurada pelos brasileiros no década de 20; a inserção de sua
obra na Literatura feminina do começo do século; a relação de sua poesia com a
infância, transcorrida no pequeno povoado onde nasceu; a postura política
“acomodada”, principalmente quando de sua permanência no México. Trata-se de um
conjunto de textos acadêmicos e como tais, apoiados em escritos da poetisa e em
leituras que as referências bibliográficas testemunham. Um deles, no entanto,
se afasta dos moldes usuais, aconselháveis ou imprescindíveis, exigidos pelas
instituições. Optando, como assinala, Gastón Lillo, por um texto que se propõe desmistificar com ironia a imagem pública da
autora, construída pela cultura hegemônica do Chile numa época em que o
processo de modernização do país (afirmação do novo Estado/Nação) requeria
signos inequívocos de identidade nacional, José Leandro Urbina, em “Memória
de lectura” mostra a Gabriela Mistral de suas lembranças: primeiro a da mulher
sorridente a acenar para os amontoados de crianças que da calçada agitam
bandeirinhas e talvez tenham gritado “Viva o Prêmio Nobel!”, “Viva Chile!”,
quando ela passa em carro aberto, desfilando por uma avenida de Santiago. Logo,
menciona sua professora do primário que se penteia como a poetisa, faz o seu
panegírico e em torno à bandeira hasteado no pátio, conduz uma roda de crianças
para cantar, talvez, a mais conhecida das estrofes de Gabriela Mistral: Dá-me a tua mão e dançaremos/ dá-me a tua mão e me amarás./ Como uma só flor nós dois
seremos,/ como uma só flor e nada
mais....É o tempo em que as crianças não sabiam onde estava a Suécia e lhes
diziam que a poetisa era mãe de todas as crianças chilenas. Depois, já podem
perceber a chegada de outros temas a substituir aqueles que a escola, a
religião e o Estado estipulavam como universo único. E descobrem Pablo Neruda e
que ele, sim, sabia de estados de alma, de rebeldias e dos poemas necessários para andar por este mundo; e descobrem,
também, Marx, Lenine e o Manifesto Comunista a deixarem ver o quanto a poesia
de Gabriela Mistral se alienava, ainda que fazendo versos às crianças pobres,
da realidade que o Sistema, do qual ela passara a fazer parte, não tinha
interesse em mudar. E José Leandro Urbina questiona a religiosidade da poetisa, a sua opção partidária, a sua incapacidade em
perceber que o opressor precisa dos oprimidos para conservar privilégios; e não
se furta ao sarcasmo, ao se referir às pequenas mãos que mendigam dos versos
comovidos, convicto de que a revolução será vitoriosa quando essas mãos que
pedem carreguem um fuzil.
Foi,
então, para ele e para a sua geração o que define como o tempo de plantar, de destruir e edificar, de abraçar e de rir. Quimeras da juventude que no espaço
religioso e elitista e prepotente que domina o Continente são impedidas de
vingar. E no Chile, logo veio o tempo da dispersão, das lágrimas e do silêncio
que os anos da ditadura largamente prolongou.
E
o depoimento se completa: fora do Chile, precisou responder sobre a presença da
mulher na literatura chilena. É quando recupera a figura de Gabriela Mistral,
mulher e professora, prêmio Nobel de Literatura, em leituras que desafiam
interpretações e o ensinam a respeitar uma poesia que, ao ser usada como
expressão da classe dominante, teve um sentido por ela modelado a sobrepujar,
por vezes, outros mais verdadeiros e profundos. Assim, Re-eler hoy a Gabriela Mistral se constitui um aporte nessa,
talvez, necessária aproximação de sentidos que somente serão conhecidos a
partir de estudos que, hoje, pelas transformações metodológicas e ideológicas
ocorridas, estão a permitir leituras que assim como interrogam, podem oferecer
respostas e mostrar facetas até então ignoradas.
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