domingo, 31 de março de 2002

Rouge Brésil. A chegada


Jean-Christophe Rufin, médico e um dos pioneiros do movimento humanitário “sem fronteiras”, viveu durante muitos anos no Brasil. Autor de ensaios sobre o Terceiro Mundo e de Les causes perdues, Sauver Ispahan, L’Abyssin, livros de ficção que foram traduzidos em várias línguas, recebeu, no ano passado o Prix Goncourt pelo seu romance Rouge Brésil, publicado pelas Editions Gallimard de Paris. 

            Ao falar das fontes de sua história – duas crianças são trazidas com a expedição francesa que veio para o Brasil com o propósito de fundar a França Antártica – menciona o momento em que, pela primeira vez, teve a idéia de escrevê-la. Na visita ao museu Paço Real, do Rio de Janeiro, diante de quadros representando a baía de Guanabara, antes da chegada dos colonizadores, reconheceu o tema que lhe é uma obsessão: o primeiro encontro entre civilizações diferentes, o instante da descoberta  que, em germe, contém todas as paixões e todos os mal-entendidos que irão nascer.

No seu romance, esse encontro se dá entre Nicolas Durand de Villegagnon e sua tropa de mercenários e os índios tamoios que, então, habitavam o litoral do Rio de Janeiro. Em 1555, ele chega na baia de Guanabara e se instala numa ilha que batiza, de Coligny e, ali, inicia a construção de um forte. A rígida moral luterana que procurava impor aos aventureiros que havia trazido nos seus barcos, não foi suficiente para impedir as relações amorosas com as índias nem o consumo do cahouim, a bebida negociada, como as mulheres, às escondidas pelos franceses e ingleses que exploravam os índios e o comércio do litoral de terra firme, abastecendo a ilha com água potável e alimentos. Porém, o desejo de transformar esse mundo desconhecido ao qual chegara, apoiando-se, apenas, nas próprias razões, o impedia de perceber tudo o mais – as montanhas, o mar, a pujante vida que ali existia, os sofrimentos de seus homens – que não fosse tentar refazer, na ilha, o universo francês de além mar.

Assim, olhar o Mundo Novo, perceber-lhe os sons e os perfumes, na espontaneidade das sensações e dos afetos, caberá a Colombe, a menina órfã, enviada para aprender a língua dos índios e servir de intérprete. Chega ao destino que não procurou e do desamparo, faz alegria. Em meio ao desespero dos recém chegados que somente vêem, diante de si o deserto, antes mesmo de desembarcar, ela se sente feliz, ao sentir a tepidez da noite, sua imobilidade acariciante, úmida como uma respiração apimentada, vinda da floresta [..]. E, sem preconceitos, saberá, sempre, usufruir a vida que irrompe ao seu redor na inesperada paisagem tropical que o romancista, demiurgo, tem o poder de recriar: o verde brilhante da vegetação selvagem, a água cor de esmeralda, a floresta suntuosa onde se abrigam as samambaias gigantes, os braços arredondados das seringueiras, a superfície aquosa dos ébanos. São os sons feitos do fervilhar invisível de vida, o mover-se da brisa nos galhos das coníferas, os perfumes dos bosques ou da acidez marinha picante de sal e de algas. São os papagaios, os pavões, uma borboleta vermelha e azul. Presença a remeter a uma exuberância e a uma pureza que logo, e para sempre, serão conspurcadas pelos homens que chegam no Continente buscando riquezas e não hesitam em exauri-lo: A ilha, dois meses depois do desembarque, estava irreconhecível. Os machados haviam mordido bastante a madeira dos coqueiros e dado golpes surdos nos seus corpos fibrosos, muitas centenas tinham sido abatidos [..], uma vintena de escravos munidos – graças aos franceses – de machados, enxadões, gazuas e outras ferramentas, tinha a terrível tarefa de abater as árvores de pau-brasil nos lugares escarpados e perigosos em que elas cresciam e depois as esquartejar. Os despojos dessas nobres madeiras, trazidas da terra firme pelas pirogas, jaziam em desordem, sobre a praia da ilha, esperando o embarque.

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