domingo, 24 de março de 2002

A profanação do segredo

            Examinados foram 26.034 processos de condenação da Inquisição portuguesa numa tarefa de muita paciência que permitiu a análise de 3.886 condenações ao degredo. O resultado foi a tese de doutorado, defendida em Paris, no ano de 1996, por Geraldo Pieroni que, em 2000, foi publicada pela Universidade de Brasília e pela Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, sob o título Os excluídos do reino: a Inquisição portuguesa e o degredo para o Brasil colonial. Certamente, um estudo inovador – o grupo de degredados, no dizer da profa. Kátia de Queirós Mattoso, orientadora do trabalho, pouco tinha interessado aos historiadores do Santo Ofício – a se aventurar num caminho que, sem dúvida, não tem sido muito do agrado daqueles que julgam inaceitável ser boa parte da população branca brasileira descendente dos degredados que os tribunais portugueses enviavam para além mar, no intuito de sanar o seu território de presenças indesejáveis.

            Três partes compõem Os excluídos do reino: “O degredo: história, legislações e poder”, “Os degredados: cristãos novos, bígamos, sodomitas, padres sedutores, feiticeiros, visionárias, blasfemadores e impostores”, “A Inquisição: quem ousa contrariá-la?” sob a qual se abriga o capítulo “A profanação do segredo: anatomia de uma instituição”. Nele se completa o itinerário do medo que se inicia com a delação, prisão, confisco dos bens, encarceramento, julgamento,  condenação e a cerimônia pública do Auto de Fé quando os condenados voltam à prisão do Santo Ofício para fazer o juramento do segredo. Mais uma cerimônia solene na qual era exigido daquele que mostrara arrependimento das culpas confessadas o juramento de nada revelar sobre o que vivera ou assistira na prisão. Só, então, passava a cumprir as penas espirituais e era transferido para o cárcere dos banidos à espera do embarque para o degredo. A submissão à guarda do segredo – no Santo Ofício não há coisa em que o segredo seja desnecessário –oferecia à Inquisição uma arma que ela utilizava para manter o controle absoluto de suas ações. Assim, todos aqueles ligados ao Santo Oficio, do mais humilde ao mais importante dos funcionários, prometiam guardar sigilo absoluto sobre o que ocorria nos tribunais e nas prisões. Tal prática buscava a fidelidade à Instituição, a Deus e ao rei. Mas, como diz Geraldo Pieroni, todo segredo está curiosamente vinculado com tudo aquilo que representa o seu contrário: a traição. E é óbvio que o silêncio exigido nem sempre foi respeitado ou pelo próprio preso ou pelos que o prenderam. Se os ministros do Santo Ofício eram passíveis de violar segredos, como o demonstram alguns dos processos analisados por Geraldo Pieroni, os guardas, cuja função era vigiar cada movimento, cada palavra, cada atitude dos prisioneiros, se mostravam os mais vulneráveis porque pobres e mal pagos não resistiam aos oferecimentos de bens materiais feitos por aqueles que a ansiedade levava a buscar notícias dos que estavam presos e incomunicáveis. Igualmente, os porteiros, os meirinhos, os médicos, os barbeiros, os despenseiros juravam guardar segredo de tudo aquilo que presenciassem nas masmorras. Mas, por uma ou outra razão, sempre havia os que se deixavam corromper. Daí, a importância de fomentar o medo e a intimidação para preservar o cumprimento de uma regra cujo princípio estava na origem de um incomensurável poder. Para salvaguardar a Instituição, os juízes inquisitoriais se serviam da denúncia recíproca entre os presos e os que serviam nas prisões numa prática que buscava defender um sigilo que, verdadeira pedra angular, permitia que o mecanismo do poder se mostrasse eficaz e pudesse cometer todas as arbitrariedades. Guardadas em sigilo, tanto quanto possível, protegidas por um silêncio sagrado, tais arbitrariedades eram como se  não existissem.

 Como cada um dos momentos que era parte do processo inquisitorial, a lei do segredo, é extremamente cruel ao sufocar confidências, indignações, queixumes. O que, no entanto, pode parecer menor diante da enormidade do mal que era imposto a eventuais culpados de possíveis delitos e a inocentes que, embora isentos de crimes ou de pecados, jamais conseguiriam provar a sua inocência. Sobretudo, o que se apresenta mais indigno e covarde porque determinado pelas leis inapeláveis do mais forte é que todas essas prisões, torturas, açoites, humilhações públicas e condenação ao degredo foram determinados por prescrições que jamais visaram a justiça e sim impor velhas e discutíveis verdades que apenas serviam ao proveito de alguns.

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