Examinados
foram 26.034 processos de condenação da Inquisição portuguesa numa tarefa de
muita paciência que permitiu a análise de 3.886 condenações ao degredo. O
resultado foi a tese de doutorado, defendida em Paris, no ano de 1996, por
Geraldo Pieroni que, em 2000, foi publicada pela Universidade de Brasília e
pela Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, sob o título Os excluídos do
reino: a Inquisição portuguesa e o degredo para o Brasil colonial.
Certamente, um estudo inovador – o grupo de degredados, no dizer da profa.
Kátia de Queirós Mattoso, orientadora do trabalho, pouco tinha interessado aos
historiadores do Santo Ofício – a se aventurar num caminho que, sem dúvida, não
tem sido muito do agrado daqueles que julgam inaceitável ser boa parte da
população branca brasileira descendente dos degredados que os tribunais
portugueses enviavam para além mar, no intuito de sanar o seu território de
presenças indesejáveis.
Três
partes compõem Os excluídos do reino: “O degredo: história, legislações
e poder”, “Os degredados: cristãos novos, bígamos, sodomitas, padres sedutores,
feiticeiros, visionárias, blasfemadores e impostores”, “A Inquisição: quem ousa
contrariá-la?” sob a qual se abriga o capítulo “A profanação do segredo:
anatomia de uma instituição”. Nele se completa o itinerário do medo que se
inicia com a delação, prisão, confisco dos bens, encarceramento, julgamento, condenação e a cerimônia pública do Auto de
Fé quando os condenados voltam à prisão do Santo Ofício para fazer o juramento
do segredo. Mais uma cerimônia solene na qual era exigido daquele que mostrara
arrependimento das culpas confessadas o juramento de nada revelar sobre o que
vivera ou assistira na prisão. Só, então, passava a cumprir as penas
espirituais e era transferido para o cárcere dos banidos à espera do embarque
para o degredo. A submissão à guarda do segredo – no Santo Ofício não há coisa
em que o segredo seja desnecessário –oferecia à Inquisição uma arma que ela
utilizava para manter o controle absoluto
de suas ações. Assim, todos aqueles ligados ao Santo Oficio, do mais
humilde ao mais importante dos funcionários, prometiam guardar sigilo absoluto
sobre o que ocorria nos tribunais e nas prisões. Tal prática buscava a
fidelidade à Instituição, a Deus e ao rei. Mas, como diz Geraldo Pieroni, todo segredo está curiosamente vinculado com tudo aquilo que representa o
seu contrário: a traição. E é óbvio que o silêncio exigido nem sempre foi
respeitado ou pelo próprio preso ou pelos que o prenderam. Se os ministros do
Santo Ofício eram passíveis de violar segredos, como o demonstram alguns dos
processos analisados por Geraldo Pieroni, os guardas, cuja função era vigiar
cada movimento, cada palavra, cada atitude dos prisioneiros, se mostravam os
mais vulneráveis porque pobres e mal pagos não resistiam aos oferecimentos de
bens materiais feitos por aqueles que a ansiedade levava a buscar notícias dos
que estavam presos e incomunicáveis. Igualmente, os porteiros, os meirinhos, os
médicos, os barbeiros, os despenseiros juravam guardar segredo de tudo aquilo
que presenciassem nas masmorras. Mas, por uma ou outra razão, sempre havia os
que se deixavam corromper. Daí, a importância de fomentar o medo e a
intimidação para preservar o cumprimento de uma regra cujo princípio estava na
origem de um incomensurável poder. Para salvaguardar a Instituição, os juízes
inquisitoriais se serviam da denúncia recíproca entre os presos e os que
serviam nas prisões numa prática que buscava defender um sigilo que, verdadeira
pedra angular, permitia que o mecanismo do poder se mostrasse eficaz e pudesse
cometer todas as arbitrariedades. Guardadas em sigilo, tanto quanto possível,
protegidas por um silêncio sagrado, tais arbitrariedades eram como se não existissem.
Como cada um dos momentos que era parte do
processo inquisitorial, a lei do segredo, é extremamente cruel ao sufocar
confidências, indignações, queixumes. O que, no entanto, pode parecer menor
diante da enormidade do mal que era imposto a eventuais culpados de possíveis
delitos e a inocentes que, embora isentos de crimes ou de pecados, jamais
conseguiriam provar a sua inocência. Sobretudo, o que se apresenta mais indigno
e covarde porque determinado pelas leis inapeláveis do mais forte é que todas
essas prisões, torturas, açoites, humilhações públicas e condenação ao degredo
foram determinados por prescrições que jamais visaram a justiça e sim impor
velhas e discutíveis verdades que apenas serviam ao proveito de alguns.

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