A que conclusões efetivamente relevantes podemos
chegar com análises sobre a tradução? Que todos os tradutores erram; ou que
todos os tradutores misturam o seu próprio estilo ao do escritor; ou que toda a
tradução é uma espécie de “deturpação”; ou que traduzir é um trabalho ingrato;
ou, ainda, que não se podem traduzir elementos de culturas diferentes? D.B.
Existem
muitas atividades que exigem uma profissionalização para a qual seria de se
esperar a posse de um conhecimento específico assim como a prática da ética que
lhe corresponda. No entanto, o que parece claro, com freqüência, está ausente
de certas lides do Terceiro Mundo uma vez que nele predomina a tendência de
aceitar, por ignorância ou comodismo, o que um maior conhecimento ou uma
consciência da cidadania, sem dúvida, iria rejeitar.
Assim,
no universo editorial brasileiro, a tradução de uma obra é, raramente,
questionada e é usual falar-se em ótimas traduções sem que haja sido feito um
trabalho comparativo com o original. Não poucas vezes, a tradução de uma obra é
solicitada, pela casa editora, a leigos, entendendo-se por leigo aquele que não
optou por se profissionalizar como tradutor e, então, é provável, que não
esteja preparado para realizar uma tarefa para a qual – seja permitido repetir
o óbvio – é imprescindível o conhecimento dos dois idiomas em questão, assim
como da honestidade na realização do trabalho. Tendo em vista que, também,
quase sempre, está em causa apenas a remuneração, a pesquisa, sempre
necessária, o esforço exigido para vencer os obstáculos relacionados com o
vocabulário, a sintaxe, os idiotismos da língua e o imprescindível cuidado na
redação de um texto são relegados e um trabalho que pode resultar apaixonante,
acabe resultando em algo tedioso ou, até, quem sabe, ingrato.
A
análise comparativa de um texto traduzido com o seu original, sem dúvida,
resulta válida, se levar a um maior cuidado por parte das editoras. Cabe
lembrar, a lamentável tradução dos Cien sonetos de amor, de Pablo
Neruda, feita por Carlos Nejar. Ser ele um bom poeta, ou pelo menos reconhecido
como tal, não lhe confere, de per si, a qualificação para traduzir outro poeta.
Seria necessário conhecer bem o espanhol e, sobretudo, não cometer
negligências.Ter a casa editora de Porto Alegre, lhe confiado o trabalho
resultou num texto que prima pelo desrespeito não somente em relação aos poemas
de Pablo Neruda, mas, igualmente, em relação ao leitor da obra em português.
Ter efetuado a análise desta tradução, indicando os erros crassos cometidos,
frutos da falta de conhecimento e do menosprezo pelo outro – autor ou leitor –
se não for útil para as próximas traduções publicadas pela editora, fica na tentativa
de deixar claro que nem todos, no país, comem gato por lebre e, ainda, se dêem
por satisfeitos. Porque, partir da premissa de que todos os tradutores erram ou
que toda tradução é uma espécie de deturpação é se dispor a aceitar um trabalho
medíocre. É evidente que sempre haverá desvios entre o texto original e o
traduzido, mas se o trabalho for competente, esses desvios ocorrerão em pequeno
número e não modificarão, significativamente, o texto original. Que, tampouco,
deverá sofrer retoques devidos à inserção do “estilo” do tradutor, pois, se o
leitor deseja ler um Pablo Neruda, um André Malraux um Bertold Brecht, o que
eles escreveram e como escreveram é o que vai lhe interessar e não as
“criações” de terceiros. Daí também ser, absolutamente, necessário conhecer o
autor e o seu contexto histórico e cultural, porque uma palavra que, na
aparência, não oferece nenhuma dificuldade, para o tradutor, pode ter, num
determinado espaço, um significado que não aquele escolhido a partir da usual e
simples e evidente transposição. Exemplo perfeito desse caso é a palavra jardin
que aparece na bela seqüência de Le mât de cocagne, de René
Depestre, em que o personagem chama a mulher amada de femme jardin. Uma
imagem que parece não admitir dúvidas: mulher jardim ou seja florida,
perfumada, bela. No entanto, para os haitianos, como o fez notar Maximilien
Laroche, a palavra jardin / jardim tem, sobretudo, o significado
de horta, espaço onde são cultivadas plantas comestíveis. Assim, femme
jardin significaria mulher relacionada com o alimento o que, na verdade, as
seqüências que seguem irão confirmar.
Mas,
é, sobretudo, no que diz respeito à ideologia que a análise comparativa do
texto original com a sua tradução pode levar a inesperados resultados. Não é
segredo, por exemplo, que as traduções das obras de Voltaire , em certa época,
aparecem sem determinados textos, certamente julgados perigosos para os regimes
monárquicos então vigentes nos países europeus. Somente uma comparação atenta
do original com a sua tradução, permitiu constatar na tradução de Dona
Bárbara por Jorge Amado, um pequeno e instigante detalhe. Numa
edição, sem data, da Editora Guaíra de Curitiba, o romance de Rómulo Gallegos
aparece pela primeira vez, em português. E, em 1974, a Record o irá publicar, novamente,
julgando que pode ser considerada uma
obra nova, na medida em que foi revista pelo tradutor. Na verdade, a
comparação do primeiro capítulo das duas traduções com o original deixam ver
que várias foram as modificações feitas, tanto no que se refere à introdução de
notas de rodapé, explicando termos regionais, como na tradução de palavras que,
na primeira edição, haviam sido conservadas no original. Modificações, ao que
tudo indica, visando um trabalho mais perfeito. Uma delas, porém, significa algo
mais: a eliminação de duas palavras, uma, exatamente igual a sua correspondente
em português; a outra, quase igual. O texto de Rómulo Gallegos, professor,
romancista e Presidente da Venezuela, fala em raças inferiores.
Na tradução, o adjetivo inferiores é eliminado, assim como o adjetivo terríveis,
referindo-se a jacarés. Uma opção que está, nitidamente, a indicar uma
visão de mundo do tradutor, quando suprime os epítetos depreciativos,
relacionados ao homem e ao animal, presentes no texto original.
Então,
dependendo da obra, do tradutor, dos vários contextos que lhe são inerentes, um
estudo comparativo do original e de sua tradução pode levar a indagações e a
constatações – ou lingüísticas ou históricas ou culturais – que, talvez, tenham
maiores interesses que não somente os de apontar erros.
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