segunda-feira, 30 de outubro de 2000

No mundo novo:os sonhos


Em 1973, a Noguer, de Barcelona, publicou El hombre que trasladaba las ciudades. Sem se afastar da verdade histórica, Carlos Droguett a refaz, insuflando-lhe vida e criando um dos mais belos e perfeitos romances da literatura Hispano-americana.  A partir das Crónicas de la Conquista de América, a narrativa se constrói sobre o destino da cidade de Barco ,fundada por Juan Núñez de Prado, a mando do Vice-rei do Peru. Ameaçado pelos espanhóis do Chile que pretendem o território, quer salvá-la e, para isso, a muda de lugar três vezes. Mal lhe dá assento pela terceira vez, o medo de perdê-la o leva a planejar nova mudança. De suas certezas e indecisões, é feito o terceiro capítulo do romance.
   

             E diz um dos capitães: Com meus sonhos fiz esta cidade para o rei. Mas, quando a desmancham para levá-la mais além porque é preciso reconstrui-la, sempre há uma voz para dizer: a faremos. E o verbo no futuro é uma expressão que se repetirá e que estará, todas as vezes, acompanhada de entusiastas adjetivos: formosa cidade, cidade e burgo importante e orgulhoso, enorme e luminosa urbe, grande cidade, terrível e grande, uma cidade maior, faustosa cidade. Também se irão repetir as reafirmações desse querer torná-la realidade ainda que, para isso, devam empregar todas as forças ou destruir os bosques. Porque os entraves para tornar real o desejado – e a chuva  gelada e pérfida da cordilheira, e os aguaceiros, e o frio do inverno e os ventos e o ataque dos índios e as traições dos espanhóis, e os lamentos de solidão e as lembranças, e a perda das carretas e dos animais nos precipícios, e o vencer e polir os bosques – parecem não ter  poder, nem  força  para anular vontades. E há quem defina o tempo: em poucos dias teremos toda a cidade de ou dentro de quatro meses, antes do verão ou, dentro de quatro meses exatos e fatais ou  dentro de duas ou três semanas. Um definir, ampliado em visões que fazem ver que em trinta anos (ou trezentos), as carruagens estarão a rodar pelas ruas e os sons urbanos irão se mesclar com o amável ruído das saias e dos risos velados e sensuais. Ou mesmo numa data precisa, o ano de 1570, quando os que por ela tanto labutaram já estejam magros, grisalhos, nobres e ricos. Também há os que, desenhando ruas e praças e jardins e os solares decidam as metas: Poremos as muralhas, uma bela rua em arco, subindo as serras, uma catedral com duas torres, um quartel medieval cheio de baluartes, as casas dos principais senhores. Ou na cidade, busquem tranqüilidade para os corpos e paz para os espíritos, a alegria de fontes e cascatas, de flores e de sons.

            Juan Núñez de Prado antevê a praça e as flores que chegarão da Andaluzia e da Holanda –  violetas, dálias, crisântemos, rosas – e nas bandeiras e guirlandas que enfeitarão, com arrogância, as casas; o padre Carvajal pensa nos gorjeios celestiais que irão encher a torre da igreja; o capitão Santa Cruz, na terra dividida, cada Senhor dono de seu rebanho, seus cavalos e seus índios, nas mulheres trazidas das Ilhas, nas mulatas cozinheiras vindas de Cuzco e de Arequipa, nas mestiças de Nova Granada e Tenochitlan.

            E, no perseguir o sonho da cidade, os espanhóis, lavrando-a com sangue e com barro, se exaurem sem se deixar vencer pelas penúrias, suores e dúvidas e sofrimentos. Acreditando, ainda, numa cidade de casas abertas, agradavelmente iluminadas, esperando uma alegria.

           

 

 

domingo, 22 de outubro de 2000

No mundo novo: a repetição


Em 1973, a Noguer, de Barcelona, publicou El hombre que trasladaba las ciudades. Sem se afastar da verdade histórica, Carlos Droguett a refaz, insuflando-lhe vida e criando um dos mais belos e perfeitos romances da literatura Hispano-americana.  A partir das Crónicas de la Conquista de América, a narrativa se constrói sobre o destino da cidade de Barco, fundada por Juan Núñez de Prado, a mando do Vice-rei do Peru. Ameaçado pelos espanhóis do Chile que pretendem o território, quer salvá-la e, para isso, a muda de lugar três vezes. Mal lhe dá assento pela terceira vez, o medo de perdê-la o leva a planejar nova mudança. De suas certezas e indecisões, é feito o terceiro capítulo do romance.
 

            Disse Juan Núñez de Prado: viemos em expedição para fabricar cidades para a Coroa [...]. E Barco só poderá ser, no seu desejo e na sua obediência, a cidade como a concebem os espanhóis. Com  verdadeira paixão, traça-lhe as primeiras ruas, chama o padre para decidir, no desenho da praça, onde ficará a igreja com seus sinos de bronze, dominando os ares. Será com as portas voltadas para o vento, para a vida, determina o capitão para logo conceber a casa do bispo, os edifícios do governo, as moradas dos corregedores, o palacete estival do vice-rei, a prefeitura, o quartel e as prisões e a forca. Barco I, que abandonara a meias e a meias carregara  nas carretas e que fora se perdendo nos caminhos se reconstrui em muralhas e calçadas e portais e  jardins e  pátios e fontes e casas com janelas no alto que se repetem em desenhos repetidos, na paisagem recente. Nasce do nada, feita dos bosques abatidos e se define em sacadas, balaustradas, em gonzos e em dobradiças, em portas de serviço. Juan Núñez de Prado que a imagina crescendo, transformada em burgo, precisando de artífices, carpinteiros,  pedreiros, serralheiros, calafates para se erguer e o padre Carvajal, na donairosa capela e sacrário e catedral, nos sinos que se multiplicam, soando entre os ramos das árvores. Os sinos que farão, como a forca, a submissão do Continente: os sinos da igreja e as cordas da forca, somente isso era a cidade e a Espanha, Deus e o rei, diz Juan Núñez de Prado a um de seus capitães na certeza de que lhe bastavam um e outro para conduzir a cidade, para mudá-la de assento, ainda que sozinho no seu cavalo: a religião, atemorizando, com abstrações, os soldados e os índios; a forca, infundindo-lhes o medo de um julgamento alheio a quaisquer regras que não sejam as que se prestam a preservar os interesses daqueles que as ditam.

            Assim, ao querer Juan Núñez de Prado matar  um de seus capitães, logo se justifica, negando-se a pecha de assassino, atribuindo-se a autoridade de um justiceiro, um alguazil, um oficial do Santo Ofício, um enviado do Vice-rei e de Real Audiência. E quando, dois soldados, a seu mando, são enforcados, embora sem a certeza de que isto seja correto – senhor, daremos prazos, um pouco de inútil espera aos prisioneiros aconselha o escrivão –  procura, com uns papéis na mão enluvada, dar explicações.

             Criando as ruas e praças e casas e jardins à semelhança do traçado ibérico e submissos às seculares instituições que, no Velho Mundo, regeram a conduta dos homens, os conquistadores, atravessando o Atlântico foram se apossando do que encontraram e, o Continente sem defesa, permitiu que nele fossem moldadas as velhas caducas idéias, os velhos conceitos caducos que, inexplicavelmente, resistiram ao tempo.

            Trouxemos conosco a traição, não só o trigo ou algumas plantas exóticas e alguns animaizinhos mas, também a falsidade, a fraqueza de caráter e de alma [...], o índio sabe, agora que pode atraiçoar o amigo e a seu irmão, que pode assassinar quem está dormindo ou doente ou  incapaz de se defender [..], diz Juan Núñez de Prado sem que tal momento de lucidez lhe modifique o comportamento. Porque, acima de tudo, ele se internou no Continente para tornar realidade o que seu rei, do outro lado do mar, imaginou.

domingo, 15 de outubro de 2000

No novo mundo: a destruição


Em 1973, a Noguer, de Barcelona, publicou El hombre que trasladaba las ciudades. Sem se afastar da verdade histórica, Carlos Droguett a refaz, insuflando-lhe vida e criando um dos mais belos e perfeitos romances da literatura Hispano-americana.  A partir das Crónicas de la Conquista de América, a narrativa se constrói sobre o destino da cidade de Barco ,fundada por Juan Núñez de Prado, a mando do Vice-rei do Peru. Ameaçado pelos espanhóis do Chile que pretendem o território, quer salvá-la e, para isso, a muda de lugar três vezes. Mal lhe dá assento pela terceira vez, o medo de perdê-la o leva a planejar nova mudança. De suas certezas e indecisões, é feito o terceiro capítulo do romance.

 

            Havia uma ordem a cumprir – fundar a cidade para ocupar o território – e um sonho a conquistar: ver a cidade florescer. Também, e muito, havia o medo de perdê-la. E, na ocupação do território e na edificação da cidade, os percalços, originando o entrelaçar de destruição: ...senhor, senhor governador, príncipe de nossos males e desgraças, senhor do céu e terra, tenente de Deus e do vice-rei (...) tu caminhas entre os escombros da cidade rota e pulverizada, caminhas entre as raízes deste mundo verde que estamos despedaçando, diz o padre Carvajal (a conquista foi feita também pela sotaina) a Juan Núñez de Prado, explicitando, sem peias, a plena consciência que possui do resultado dos atos da conquista. Dirá, ainda, que é preciso erguer a cidade, mesmo que matando algumas árvores e diante do que chama um grandioso bosque, opinará que dele é possível tirar as madeiras para dez cidades, para um milhão de casas e imóveis. Na verdade, a inesperada riqueza do Continente irá inebriar os recém chegados e fazer com que ignorem limites. Assim, haverá o momento em que Juan Núñez de Prado decide cortar muita madeira, decide por o bosque abaixo.Também haverá aquele em que imagina os troncos caídos para trás através de suas raízes despenteadas e úmidas na interminável ruazinha. Ou, ainda, um outro em que, mentalmente faz a conta de quantas árvores, grandiosas e cheias de força terá que cortar.

            Veracidade e verossimilhança nessa necessidade real da madeira para construir casas e fabricar móveis e na urgência em abrir espaço para a cidade ou para as trilhas que está contida na narrativa, assim como, nela, estará presente a agressão dos conquistadores para com esse mudo que desejam submeter.

            Risos e vozes se mesclam, então, ao barulho dessas marteladas e golpes que fazem ranger as árvores, que rebentam os troncos. Soldados decepam árvores, levantam os machados para afundá-los bem fundo, dão machadadas alvoroçadas. Suados, batem nos troncos e os capitães e os padres se igualam a eles nos golpes de machado que assentam, no esforço para derrubá-los. Surgem o oco deixado pelas raízes arrancadas, quebradas, dolorosas e sangrentas, os ramos pendurados, sofridos, grotescos, as árvores açoitadas, feridas, derrubadas, odiadas.. Adjetivos  que a mostram vítima de algozes cuja silhueta irá se esboçar, sempre, a partir dos mesmos verbos de que são sujeitos: derrubar, descarregar, levantar o machado, dar machadadas, enterrar os punhais e a picareta e cujo objeto será, também, sempre, a árvore. Em toda a sua irresponsável crueldade, esse desenfreado aniquilamento se mostrará, sobretudo, através de exímios recursos narrativos.

            É próprio do relato de Carlos Droguett, fixar, por vezes, o efêmero e o fugidio: um raio de sol ou de luar se detendo sobre um objeto, um animal que passa, que se afasta, um olhar, um gesto, um movimento. Em se tratando do abate das árvores, esse momento, em meio a marteladas e machadadas em que, repentinamente, o traço úmido de uma árvores enorme a cair, deixa um silencioso vazio. Igualmente, lhe é muito usual, fazer referências ao tempo, ou noite ou dia, precisando as nuanças do cenário: “em meio daquele esplendor do entardecer da manhã ensolarada, palpitavam com suave força os golpes de machado derrubando troncos.

            Mas, em El hombre que trasladaba las ciudades, no seu constante repetir-se o que sobressai é a relação que os homens estabelecem com as árvores e cuja síntese parece estar no quadro que se apresenta a Juan Núñes de Prado na azáfama de construir a cidade: olhou para os homens, golpeavam a árvore com tranqüila fúria, não falavam, apertavam os lábios, tinham a respiração contida, tensos os músculos do pescoço e dos braços [...], expelindo todo o seu horror e sua enorme força, gastando seu ódio contra as enormes árvores inermes, açoitando seu desespero contra elas, como se nos ramos altos e duros, nas raízes negras e profundas estivesse agarrotada e presa e atenazada a cidade. Porém, assim como ele vê e, por vezes, entende o que se passa a seu redor, ele  também é visto pelos soldados que olham para seus dedos longos e finos, agarrados no machado como antes haviam estado presos à espada. No seu gesto, como se a árvore fosse um inimigo a ser vencido. E, então, quando,  toma do machado e o assenta na árvore até derrubá-la, ao vê-la cair, lança um grito de repto e de desafio, quase enfurecido. No entanto, essa destruição que ordena, apoiado nos seus motivos e a que executa, com as próprias mãos, no afã de construir a cidade, faz surgir não mais a árvore pujante e grandiosa mas a que, imolada, se queixa ao cair, espalhando folhas perdidas, dispersas e fragrantes, multidão de folhas, exalando o cheiro úmido, acre e doce da madeira partida, o perfume quebrado cheio de vida que emanava de tronco ferido, na emanação das folhas frescas e da seiva desprendidas pelos destroços no chão.

            Porém, nem as árvores sacrificadas nem os seus perfumes tardios, única  resistência possível para  prolongar a vida, ainda que no etéreo de um perfume, tiveram algum significado para o capitão e para os seus soldados.

domingo, 8 de outubro de 2000

No mundo novo:os caminhos


 Em 1973, a Noguer, de Barcelona, publicou El hombre que trasladaba las ciudades. Sem se afastar da verdade histórica, Carlos Droguett a refaz, insuflando-lhe vida e criando um dos mais belos e perfeitos romances da literatura Hispano-americana.  A partir das Crónicas de la Conquista de América, a narrativa se constrói sobre o destino da cidade de Barco ,fundada por Juan Núñez de Prado, a mando do Vice-rei do Peru. Ameaçado pelos espanhóis do Chile que pretendem o território, quer salvá-la e, para isso, a muda de lugar três vezes. Mal lhe dá assento pela terceira vez, o medo de perdê-la o leva a planejar nova mudança. De suas certezas e indecisões, é feito o terceiro capítulo do romance. 

Entre uma elucubração e outra, diz para seu capitão, o padre Carvajal, um dos religiosos que acompanha a expedição, cujo intuito é a ocupação do território: somos mil e milhões os aventureiros de espada e sotaina que vagamos pelo velho mundo, a  Espanha famélica e iluminada sacudiu-os de sua pelagem como um punhado de piolhos e aqui estamos multiplicando-nos para viver, matando para abrir caminhos na direção de Deus e do rei. Asserção, de certa sorte, semelhante a do capitão Bazán ao se expressar, com os olhos e com as mãos, sobre o que levam as carretas: um bando de traidores, lençóis sujos, espanhóis sujos, forcas de enforcados, sacos de vinhos, cestas vazias. Na verdade, esses espanhóis são os coitados que participam de uma tarefa ingrata e sem glória, a de trabalhar junto com os índios, carregando e descarregando a cidade, construindo e desfazendo paredes, tetos e portas, puxando animais, segurando-os para que não desfaleçam nem se aterrorizem sob os relâmpagos. Porque a busca do novo assento não se intimida com a escuridão e o vento, a chuva e a lama. O afã de chegar ou de seguir, enfrenta os danos e as perdas – animais e carretas, rolando por abismos – e leva a penetrar nos bosques para achar um lugar que ninguém sabe se realmente será o definitivo. E passado e presente e futuro estão enredados no constante movimento dos homens, animais e carretas.

            Ao ser Barco III assentada, Juan Núñez de Prado vê, diante dele, carregadas de soldados, as carretas passando lentamente. Lembra-se da imagem que lhe ficou, ao abandonar Barco I, cavalgando na trilha das carretas que se bamboleavam na penumbra envoltas pela fumaça e pelas luzes. Em dado momento, decide que, talvez, dentro de alguns meses, ele detenha as carretas sob as árvores. Mas, logo, ao enfrentar seus capitães, já está diante de uma definitiva escolha que  reconhece, também, como sua nas carretas carregadas, nos índios acorrentados, nos cavalos descansados e ferrados de novo, na necessidade, urgente, de partir.

            É um sonho ou pesadelo que os impulsa com a cidade às costas como se buscassem o paraíso apregoado na Espanha miserável que deixaram no além mar, abandonando pelo caminho pedaços de móveis, cadeiras, borzeguins e espadas que os índios podiam rastrear sob as árvores e do outro lado do rio.

            Mas, na terrível viagem, assim a define o padre Carvajal, foi, mais do que nada, um salpicar de sangue, em nome do Estado e da Fé, nas selvas, nos cerros, nos rios e nas montanhas nevadas.  Nas forcas e nos túmulos foram ficando os espanhóis, parte da terra que desejavam possuir:
ossos de espanhóis, marcando a rota de Deus e do rei.

 

domingo, 1 de outubro de 2000

No mundo novo: o lugar


 Em 1973, a Noguer, de Barcelona, publicou El hombre que trasladaba las ciudades. Sem se afastar da verdade histórica, Carlos Droguett a refaz, insuflando-lhe vida e criando um dos mais belos e perfeitos romances da literatura Hispano-americana.  A partir das Crónicas de la Conquista de América, a narrativa se constrói sobre o destino da cidade de Barco ,fundada por Juan Núñez de Prado, a mando do Vice-rei do Peru. Ameaçado pelos espanhóis do Chile que pretendem o território, quer salvá-la e, para isso, a muda de lugar três vezes. Mal lhe dá assento pela terceira vez, o medo de perdê-la o leva a planejar nova mudança. De suas certezas e indecisões, é feito o terceiro capítulo do romance.  

            Do capitão Ardiles é a convicção de que  poucas semanas serão suficientes para construir a cidade. Rodeada de muralhas, diz Juan Núñez de Prado e no lugar que define como formoso vale. Expressão imprecisa para designar o lugar desse terceiro assento da cidade, tanto quanto todas as outras que se referem ao espaço onde se movem os figurantes da louca aventura da conquista. Sem jamais ser descrito – consta que o romancista nunca esteve nos lugares em que Barco foi assentada – é um espaço cuja presença constante, se faz a partir de exemplares recursos narrativos. Eventualmente, a menção de algum acidente geográfico: serras afastadas na direção do rio, do outro lado das serras, para o oeste se divisavam algumas montanhas, entre as colinas, montes e vales, cordilheira, desfiladeiros e montanhas, devida, muitas vezes a um olhar, a um desejo, a uma constatação. Assim, Juan Núñez de Prado imagina a cidade com muitas cadeiras, usadas nas escolas e nas igrejas e para os velhos friorentos ficarem olhando a noite aparecer entre as colinas.Ou, pretende acrescentar um pedaço maior desses montes e vales e dessas soledades ao corpo da cidade Ou, se dá conta desse adentrar-se de seus homens no Continente: espanhóis sujos e desamparados e esparramados nas selvas e nas serras e de  suas ações montanhas que atravessarmos e ensanguentamos.  Mas, é principalmente, através das referências à vegetação – bosques ou árvores – que o cenário do romance se estabelece e adquire contornos. Carlos Droguett,  em algum momento, precisa as espécies: algarrobo, higuera, castaño. Mas, sobretudo,  atribui qualidades: belo bosque silencioso, bosque úmido e negro, grandioso bosque, bosque imenso, bosque copioso, inocente, árvores grandiosas e cheias de força, de certa forma, as esboça para fazê-las vibrar e estremecer e agitar-se com as aragens e com o bater de asas dos pássaros. Por momentos, as entrelaça com o nascer da cidade nesse desejo de Juan Núñez de Prado de fincar as raízes das casas nas raízes de suas árvores, colocando suas paredes na direção de suas folhas e flores, pondo suas sacadas e janelas e balaustradas na umidade amável de seus galhos. Ou com o seu sonho de futuro: as ruas, as casas emergindo milagrosamente das árvores. Sobretudo, o romancista faz da árvore e do bosque, também, vítimas da destruição que irá determinar os atos dos que chegavam ao Continente apenas para exauri-lo. Mas, ou para mostrar a força das terras ou para dizer quão injusta e cruel é a destruição que sobre elas se faz, há uma vida gloriosa que se instaura na água, no céu, no vento que, em movimentos cambiantes,  se mesclam, se fundem para completar a imagem desse novo mundo: é o gelado ruído da água, é o céu alto e estival que emerge no alto e se torna cada vez mais tenso e rumoroso, é o vento que sopra ora vagarosamente, ora forte e morno, anunciando tempestades, ora velado e verdoso , é o cair das folhas e ramos no espelhante barulho da água, são os sons dos pássaros, cantando todos juntos presos e confundidos nas suas próprias plumas.



            Um mundo que os ibéricos mal percebem no anseio da conquista. Juan Núñez de Prado, designado para  criar nessas paragens uma réplica do mundo velho, hesita entre o querer  aquietar-se na paisagem imóvel ou continuar a perseguir quimeras. Em um momento ele diz: este é um belo lugar, o mais bonito de todos, lançaremos frondosas raízes nele, construiremos uma centena de casas do fundo da terra, temos um tempo propício e muitas árvores que darão um aspecto fantástico e endiabradamente desenhado às ruas e praças.

            E esse foi o efêmero sonho de Barco III.