domingo, 2 de julho de 2000

O baile. 3


       São três romances, separados pelo tempo e pelo espaço geográfico: Las lanzas coloradas (1931) do venezuelano Arturo Uslar Pietri, Hijo de Hombre  (1960) do paraguaio Augusto Roa Bastos e Gringo viejo (1985) do mexicano Carlos Fuentes. Eles tem um tema em comum: numa breve seqüência, a descrição de um baile. Nos três casos, um baile surpreendente.  

            Nunca se haviam visto refletidos, de corpo inteiro, num espelho. Não sabiam que seus corpos eram algo mais do que um pedaço de sua imaginação ou um reflexo quebrado num rio. Por isso, o salão de baile não tinha sido queimado, salvando-se da destruição quando os revoltosos invadiram a fazenda dos Miranda que haviam construído esse Versalhes em miniatura com suas paredes cobertas de espelho e o seu assoalho feito de um elegante parquê, importado da França. Uma verdadeira e estranha jóia, encravada numa propriedade rural tão imensa que para atravessá-la era preciso viajar de trem durante dois dias e uma noite. Quando os revoltosos nela chegaram, enforcaram, nos postes do telégrafo, os federais que defendiam o governo e a incendiaram. Os donos já  haviam partido, em busca de melhores ares, para a França. De qualquer modo, muito pouco ali viviam. Apenas uns breves dias de férias quando, se entediando, buscavam se distrair a galopar pelos campos onde golpeavam os trabalhadores que, dobrados sobre seus pobres campos de feijão ou de um trigo frágil, não reagiam mesmo diante das afrontas que faziam às suas mulheres sobre as quais se lançavam, sem freios.

 E, foram esses maltratados pelo trabalho que mal lhes matava a fome e mal lhes permitia viver, na humilhação cotidiana de estar sempre submisso ao mandante de turno, à sacristia e às aristocracias ridículas que se lançaram à Revolução, buscando, na luta, mudar o que, até então, os mantivera imobilizados como escravos ou como réus.

No romance Gringo viejo  (Fondo de Cultura Económica, 1985), de Carlos Fuentes, um punhado deles, donos apenas do direito de serem rebeldes, segue o general Tomás Arroyo, filho espúrio de um Miranda. Criado entre dois mundos, o da opulência paterna, que lhe é negado e o da miséria materna, ao qual pertence, sabe o quanto precisa mudar no seu mundo de praga e de fome e que as mudanças devem ser feitas à revelia das regras existentes.

 Em meio ao cheiro de comida, a cavalos soltos e a carretas abandonadas, em meio ao pó e à fumaça, eles se instalaram perto das ruínas da fazenda incendiada e da qual restava, apenas, o salão de baile. E foi nele que irrompeu a festa. Primeiro risos e uma trombeta desafinada. Logo, brincadeiras, uma guitarra e o acordeão. Os homens e as mulheres da tropa, misturados com os da aldeia, dançavam e se beijavam furtivamente. Outra vez, a festa no salão de baile dos Miranda. Mas, seus espelhos já não refletiam os meneios elegantes dos que antes aí dançavam valsas. Agora, era a alegria  de uma polca norte-americana, as esporas dos ginetes se arrastando no chão, rasgando e estraçalhando o parquê vindo da França. Como se a prepotência tivesse sido, verdadeiramente expugnada. Como se os direitos que pretendiam conquistar lhes fossem, na verdade, concedidos.

Nenhum comentário:

Postar um comentário