São
três romances, separados pelo tempo e pelo espaço geográfico: Las lanzas coloradas (1931) do
venezuelano Arturo Uslar Pietri, Hijo de
hombre (1960) do paraguaio Augusto
Roa Bastos e Gringo viejo (1985) do
mexicano Carlos Fuentes. Eles tem um tema em comum: numa breve seqüência, a
descrição de um baile. Nos três casos, um baile surpreendente.
Hijo de hombre está entre aqueles romances que fizeram parte do
“boom”, o assim chamado momento da Literatura em que várias obras da Literatura
Latino-americana obtiveram não apenas grande sucesso de venda como foram alvo
das atenções do Primeiro Mundo. Premiado no Concurso Internacional Losada 59, este
primeiro romance de Augusto Roa Bastos abarca um período de mais de vinte e
cinco anos da História do Paraguai. Inicia-se o primeiro de seus episódios (são
em número de nove e, na aparência, independentes entre si) um pouco antes do
aparecimento do cometa Halley e o último coincide com o término da Guerra do
Chaco.
O capítulo “Fiesta”, o sexto do
romance, relata a perseguição, pelas forças regulares, de um grupo de rebeldes,
delatados, num momento de embriaguez, pelo Tenente que os treinava para a luta
armada. Foram todos mortos ou presos, salvo Cristobal Jara. A sua procura, os
soldados revistaram as casas do povoado, a igreja, os currais, os poços, os
banhados, os matos circunvizinhos. Somente se detiveram diante das cabanas dos
leprosos que os oficiais vigiavam, a distância, com seus binóculos. No
cemitério, deitado num túmulo vazio, o perseguido, no meio da terra e do capim,
espera o momento de se evadir. Pelo menino que a mando da mãe, a coveira e
guardiã do cemitério, leva alguma comida para ele, soube da festa que as
senhoras da igreja e as professoras iriam oferecer aos militares, os heróis do banhado que haviam, segundo elas, salvo o povoado da morte e da ruína
que semeariam os revoltosos.
À noite, a festa estava no auge. No
salão iluminado, os oficiais rodeados pela melhor sociedade: os fazendeiros, os
comerciantes, os funcionários da Estrada de Ferro e o padre. No pátio, se
aglomeravam os soldados que, no meio do pó, dançavam apertados às mulheres
descalças, guiados mais pela memória do que pela música que se filtrava, avaramente, do salão onde, sobre um estrado, tocavam os
músicos.
Foi quando dom Bruno Menoret,
patrão de Cristobal Jara, o divisou, de repente, entre os poucos civis que
dançavam com os chapéus enfiados até os olhos. Mal acreditando no que via, mal
contendo as palavras, correu em busca do capitão para dizer-lhe que o homem que
procurava estava ali, entre eles. Porém,
não teve tempo de falar, paralisado por uma súbita dúvida. Ninguém soube, talvez nem ele mesmo o soubesse, se nesse momento ia
delatar a Cristobal Jara ou se, pelo contrário, estava tratando de urdir a seu
favor, uma longa patranha, alguma incrível e absurda cartada, mais incrível,
ainda, que o mesmo fato de ter vindo esse homem ali, a inferir sozinho a todos
os seus inimigos a enormidade dessa afronta com uma coragem demoníaca e
desesperada. Talvez compreendesse, de repente, a magnitude dessa loucura e
tivesse decidido jogar a própria vida para defendê-la e fazê-la triunfar além
das possibilidades permitidas.
Mas, nada fez e nada ele disse porque nesse momento foi ouvida a gritaria das
mulheres, constatando a presença dos leprosos no baile. Houve uma fuga
desesperada de todos que ali dançavam, também dos soldados e dos músicos.
Somente o tocador de harpa, que parecia cego, alheio ao que acontecia,
continuava a tocar. O capitão permaneceu
imóvel, olhando, como num grande pesadelo, vários leprosos dançando grotescamente
com seus corpos inchados e roídos sob a luz lívida. Cristobal Jara e sua
companheira de dança saíram sem pressa, protegidos por essa guarda de corpos fantasmais
enquanto a harpa tocava, vivamente
um galope no salão deserto.
No imprevisto desta breve seqüência
do baile, como de resto, bem explícita no romance inteiro, a dicotomia de
classes já expressa na frase que a inicia: “A
festa estava no seu apogeu com o
salão e o pátio atulhados de gente. No salão deslumbrante de luzes, pessoas
bem vestidas, música tocada pela orquestra, alguma sutileza na relação social
versus o pátio empoeirado, soldados barbudos, sujos de barro, fedendo a suor de
cavalos e ao próprio suor e às águas do banhado, música apenas audível, mãos
crispadas nas costas de seus pares, olhos turvos de ânsias amorosas.
Desenham-se, então, nessa dicotomia, destinos que diferem entre si e
nada mais são do que esse repetir-se das instituições ibéricas no Continente.
Percebê-la é entender um sentido entre os muitos que possuem este romance de
múltiplas leituras.

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