...a vontade de um canto com explosões, o
desejo / de um canto imenso, de um metal que recolha / guerra e sangue nu. Pablo Neruda.
Convidado
para fazer uma conferência no Sindicato de Carregadores do Mercado mais popular
de Santiago do Chile, Pablo Neruda chegou na sala gelada onde, sentados em
caixotes ou em bancos improvisados, uns cinqüenta homens o esperavam. O poeta,
no seu livro de memórias Confieso que he
vivido (Barcelona, Seix Barral, 1974), ao relembrar o fato, os rotula de estranho
público: vestiam, alguns, no frio mês de julho, apenas uma velha camiseta
enquanto outros estavam com o torso nu. Pablo Neruda, ao entrar no automóvel
que até ali o conduzira, ignorava para onde o estavam levando e, diante desses
homens que olhavam para ele, muito
sérios, não sabia o que dizer. Vencendo o desejo de desistir, tirou do bolso um exemplar de España en el corazón, o poema que ele
desejou claro e transparente. Começara a escrevê-lo em 1936. Era cônsul do
Chile em Madrid quando, em 18 de julho, irrompeu a Guerra Civil espanhola. Dos
muitos e grandes sofrimentos dela originados, se impregnaram os seus versos e o
resultado foi um poema que, o próprio poeta, jamais acreditou ser de fácil compreensão. Logo, ele é destituído de
suas funções e deixa a Europa no ano seguinte. Em novembro, pela Ediciones
Ercilla, é publicado España en el
corazón que, em 1938, já contava com quatro edições, uma delas de
Barcelona. O pequeno livro tem como subtítulo “Himno a las glorias del pueblo
en guerra (1936-1937)” e se divide em uma vintena de poemas que enaltecem a
Espanha e o seus heróis e não poupam os que a desejam submissa ao poder
franquista. Na “Invocación”, o primeiro deles, não invoca as musas para o seu
canto mas expressa o desejo de testemunhar sobre essa Espanha que se dilacera e
à qual chama de cristal de taça, não
diadema,/sim machucada pedra, combatida ternura/ de trigo,/couro e animal ardendo! E pátria sulcada, Espanha
fuzilada, solene pátria, Espanha dura ,Espanha quebrada, a
chamará noutros versos. No poema “Cómo era España” lhe dedica duas estrofes em
que as palavras que a qualificam (tensa e seca, azul e vitoriosa, proletária
de pétalas e bala, única viva e sonolenta e sonora, percorrida por sangues e
metais) assim como as metáforas que a definem (diurno tambor de som opaco, silêncio de açoitadas intempéries, planície
e ninho de águia, pedra solar) ainda a mostram na força passível de
engendrar vitórias. Vitórias sobre um
inimigo conhecido, e então, nominado (generais,
coronéis, bispos, banqueiros, embaixadores, ministros, senhoras de confortável chá e posição,
duquesas, ricos daqui e dali) que o poeta, vencido pela indignação, trata
de malditos, chacais, víboras, hienas,
monstros, fúrias, bestas, mascarados, bandidos, traidores, devoradores .Expressões
que se tornam mais virulentas ao serem reforçadas por adjetivos (sotainas raivosas, frades negros, hienas
sedentas, soldado traidor, embaixadores pútridos, chuvosas beatas) ou
usadas em figuras estilísticas (malditos/uniformes
manchados e sotainas de azedos, hediondos cães de cova e sepultura). Como
reverso da medalha, os que lutam contra a falange: os mineiros, os pedreiros,
os ferroviários, os camponeses, os pescadores, os sapateiros, os carpinteiros, a delgada
e dura e madura e ardente brigada de pedra.
No
último poema “Oda solar al Ejército del
pueblo” o poeta, antes de conclamar o exército do povo à luta, diz do
entusiasmo das crianças e das mães pelos seus feitos, neste saudar os soldados
com as espigas,/ o leite, as batatas, o
limão, o louro,/ tudo o que é da terra
e da boca do homem. As referências
aos trabalhadores e o ter usado – como é
peculiar na sua poesia – palavras tão usuais do cotidiano, sem dúvida,
lhe facilitaram chegar ao coração dos que o ouviam nesse dia de inverno. Porque
embora haja, é certo, um ou outro poema (ou verso ou estrofe) que se mostra hermético, a maior parte de España en el corazón é feita de clareza e emoção diante dos que
lutavam por essa utopia que é pretender a justiça social.
Durante
uma hora Pablo Neruda foi lendo e lendo o seu
longo poema. Quando se dispôs a partir, um entre aqueles homens que o
haviam escutado, dele se aproxima para agradecer. Não se impede de chorar, como
outros também o fizeram. E o poeta foi embora entre olhares úmidos e rudes
apertos de mão.
Muitos
anos se passaram até esse tempo em que Pablo Neruda se volta para o passado. Ao escrever suas
memórias as lembranças que lhe afloram
são um renovar de sentimentos. O poeta já tem uma vida plenamente vivida para
poder mensurar a grandeza dos apertos de mão e das lágrimas com que os
trabalhadores do mercado o honraram. E pergunta ou se pergunta: Pode um poeta ser o mesmo depois de ter
passado por estas provas de frio e fogo?
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