domingo, 16 de julho de 2000

Ofício de Poeta. 2

 
...a vontade de um canto com explosões, o desejo / de um canto imenso, de um metal que recolha / guerra e sangue nu.    Pablo Neruda. 

            Convidado para fazer uma conferência no Sindicato de Carregadores do Mercado mais popular de Santiago do Chile, Pablo Neruda chegou na sala gelada onde, sentados em caixotes ou em bancos improvisados, uns cinqüenta homens o esperavam. O poeta, no seu livro de memórias Confieso que he vivido (Barcelona, Seix Barral, 1974), ao relembrar o fato, os rotula de estranho público: vestiam, alguns, no frio mês de julho, apenas uma velha camiseta enquanto outros estavam com o torso nu. Pablo Neruda, ao entrar no automóvel que até ali o conduzira, ignorava para onde o estavam levando e, diante desses homens que olhavam para  ele, muito sérios, não sabia o que dizer. Vencendo o desejo de  desistir, tirou do bolso um exemplar de España en el corazón, o poema que ele desejou claro e transparente. Começara a escrevê-lo em 1936. Era cônsul do Chile em Madrid quando, em 18 de julho, irrompeu a Guerra Civil espanhola. Dos muitos e grandes sofrimentos dela originados, se impregnaram os seus versos e o resultado foi um poema que, o próprio poeta, jamais acreditou ser de fácil compreensão. Logo, ele é destituído de suas funções e deixa a Europa no ano seguinte. Em novembro, pela Ediciones Ercilla, é publicado España en el corazón que, em 1938, já contava com quatro edições, uma delas de Barcelona. O pequeno livro tem como subtítulo “Himno a las glorias del pueblo en guerra (1936-1937)” e se divide em uma vintena de poemas que enaltecem a Espanha e o seus heróis e não poupam os que a desejam submissa ao poder franquista. Na “Invocación”, o primeiro deles, não invoca as musas para o seu canto mas expressa o desejo de testemunhar sobre essa Espanha que se dilacera e à qual chama de cristal de taça, não diadema,/sim machucada pedra, combatida ternura/ de trigo,/couro e animal ardendo! E pátria sulcada, Espanha fuzilada, solene pátria, Espanha dura ,Espanha quebrada, a chamará noutros versos. No poema “Cómo era España” lhe dedica duas estrofes em que  as palavras que a qualificam (tensa e seca, azul e vitoriosa, proletária de pétalas e bala, única viva e sonolenta e sonora, percorrida por sangues e metais) assim como as metáforas que a definem (diurno tambor de som opaco, silêncio de açoitadas intempéries, planície e ninho de águia, pedra solar) ainda a mostram na força passível de engendrar vitórias. Vitórias sobre um inimigo conhecido, e então, nominado (generais, coronéis, bispos, banqueiros, embaixadores, ministros,  senhoras de confortável chá e posição, duquesas, ricos daqui e dali) que o poeta, vencido pela indignação, trata de malditos, chacais, víboras, hienas, monstros, fúrias, bestas, mascarados, bandidos, traidores, devoradores .Expressões que se tornam mais virulentas ao serem reforçadas por adjetivos (sotainas raivosas, frades negros, hienas sedentas, soldado traidor, embaixadores pútridos, chuvosas beatas) ou usadas em figuras estilísticas (malditos/uniformes manchados e sotainas de azedos, hediondos cães de cova e sepultura). Como reverso da medalha, os que lutam contra a falange: os mineiros, os pedreiros, os ferroviários, os camponeses, os pescadores, os sapateiros, os carpinteiros, a delgada e dura e madura e ardente brigada de pedra.

            No último poema  “Oda solar al Ejército del pueblo” o poeta, antes de conclamar o exército do povo à luta, diz do entusiasmo das crianças e das mães pelos seus feitos, neste saudar os soldados com as espigas,/ o leite, as batatas, o limão, o louro,/ tudo o que é da  terra e da boca do homem. As referências aos trabalhadores e o ter usado – como é  peculiar na sua poesia – palavras tão usuais do cotidiano, sem dúvida, lhe facilitaram chegar ao coração dos que o ouviam nesse dia de inverno. Porque embora haja, é certo, um ou outro poema (ou verso ou estrofe)  que se mostra hermético, a maior parte de España en el corazón   é feita de clareza e emoção diante dos que lutavam por essa utopia que é pretender a justiça social.

            Durante uma hora Pablo Neruda foi lendo e lendo o seu  longo poema. Quando se dispôs a partir, um entre aqueles homens que o haviam escutado, dele se aproxima para agradecer. Não se impede de chorar, como outros também o fizeram. E o poeta foi embora entre olhares úmidos e rudes apertos de mão.

            Muitos anos se passaram até esse tempo em que Pablo Neruda  se volta para o passado. Ao escrever suas memórias as lembranças  que lhe afloram são um renovar de sentimentos. O poeta já tem uma vida plenamente vivida para poder mensurar a grandeza dos apertos de mão e das lágrimas com que os trabalhadores do mercado o honraram. E pergunta ou se pergunta: Pode um poeta ser o mesmo depois de ter passado por estas provas de frio e fogo?

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