domingo, 9 de julho de 2000

Ofício de Poeta 1.


Minha vida é feita de todas as vidas: as vidas do poeta.

                                                                 Pablo Neruda.           

            Poeta, Pablo Neruda, como poucos, viveu momentos de uma intensa emoção. Não apenas a de se sentir amado ou alvo de admiração fervorosa, mas, também, a de poder interferir em determinadas circunstâncias, mudando-lhes o sentido.

            Na décima primeira parte de seu livro de memórias, Confieso que he vivido, (Barcelona, Seix Barral, 1974) por ele intitulada “La poesia es un oficio”, diz que jamais pensou, ao escrever seus primeiros livros, que ao longo dos anos, iria lê-los em praças, ruas, fábricas, aulas, teatros e jardins. E, recorda algumas passagens em que, ao fazê-lo, recebeu preitos de carinho, testemunho  de respeito, sem dúvida, motivo suficiente para levá-lo a acreditar que  tem sido privilégio de nossa época – entre guerras, revoluções e grandes movimentos sociais – desenvolver a fecundidade  da poesia até limites insuspeitáveis. Estas suas palavras irão ter um significado mais amplo ao serem seguidas pelo relato do que lhe aconteceu no Mercado mais popular de Santiago do Chile ou na praça de Lota quando da leitura de seus poemas ou do que fez acontecer na cidade do México ao tornar público o seu poema para Tina Modotti.

            Chegara Pablo Neruda ao México em 1940, logo depois do retorno de Tina Modotti que, por atividades políticas, fora expulsa do país. Nascida na Itália em 1896, havia emigrado, muito jovem, para os Estados Unidos de onde, três anos depois, partira para o México. Lá, se uniu ao grupo que preconizava a união do artístico com o social – David Alfaro Siqueiros, Diego Rivera, Rufino Tamayo, Rafael Alberti, Antonio Machado e Frida Kahlo – e as fotos que faz, então, testemunham as injustiças e as desigualdades sociais contra as quais ela passa a lutar. Quando Pablo Neruda a conheceu, abandonara  a fotografia para se dedicar, inteiramente ao Partido Comunista.  Sempre disposta a qualquer tipo  de tarefa, mesmo aquelas mais humildes e ainda sabendo que a sua saúde estava prejudicada por um problema cardíaco que, realmente lhe provocou a morte. Morreu dentro de um taxi que a levava para casa. Os jornais não a pouparam, inventando histórias inacreditáveis em que era apresentada como a mulher misteriosa de Moscou que havia morrido por saber demais. Indignado, Pablo Neruda decide escrever um poema que ele mesmo rotula de  desafiante e mandá-lo para todos os jornais embora acreditando que nenhum deles o publicaria. No dia seguinte, porém, em lugar da  revelações prometidas, estavam,  em todas as páginas, os seus versos.

            “Tina Modotti há muerto” (publicado mais tarde, em Tercera residencia, no ano de 1947, pela Losada de Buenos Aires) é um poema de dez estrofes, cada uma com quatro versos. O poeta o inicia, dizendo-lhe o nome e chamando-a de irmã e querendo crer que não dorme. Mas, a dúvida de um talvez presente no verso seguinte, relacionando o seu coração com o crescer da rosa, sugere que ela já se encontra num mundo novo. Então, expressa o desejo que descanse, tendo como assente, na próxima estrofe, que o seu espaço é outro (a nova terra é tua),  que o seu vestir é outro (puseste um novo traje de semente profunda), metáforas que levam a uma certeza: não dormirás em vão, irmã.

            A repetição da palavra hermana (irmã) torna claro o  seu compromisso de afetos e escolhas ideológicas com Tina Modotti. O perfil  que dela traça, na enumeração de palavras com imensa força de sugestão – abelha, sombra, fogo, neve, silêncio, espuma de aço, linha, pólen -,  torna mais  desprezivelmente violenta, a presença de quem  a persegue então rotulado de chacal, assassino, vendido.

            Convicto, ele próprio das verdades que buscava Tina Mondotti, o poeta não hesita em afirmar que o mundo caminha na direção que ela preconizava, num anseio propagado  nas velhas cozinhas de tua pátria, nos caminhos empoeirados, algo se diz e acontece, algo volta à chama de teu dourado povo, algo desperta e canta. Anseio compartido – outra vez a chama de irmã -  pelos que hoje dizem teu nome e que, na verdade, são muitos, de todas as partes, da água e da terra. Entre eles, o poeta, ao usar a primeira pessoa plural: com tu nombre otros nombres callamos e décimos (com teu nome outros nomes calamos e dizemos).       Desejando, talvez, reafirmar o prestígio, o valor da mulher que defende, Pablo Neruda usa o advérbio hoy (hoje) que se refere a esse dia preciso em que à beira do túmulo de Tina Modoti irá declamar o seu poema e que pode ter o  sentido ampliado para o momento em que vivem: quando, ainda, era possível, para alguns, aspirar à justiça social. Tempo e pensamento  que o poeta pretende eternizar, no último verso do poema quando afirma: Porque el fuego no muere (Porque o fogo não morre).

            Tina Modotti jaz no cemitério da cidade do México, sob uma pedra de granito mexicano. 

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