domingo, 2 de abril de 2000

A herança.

 
           “Canção na beira do mar” é o título  do capítulo que se inicia contando: estas coisas aconteciam no inverno de 1547. Pedro de Valdivia se dedicava à conquista das terras do Continente e precisava, sempre mais, de ouro para seguir adiante. Era-lhe muito pouco o conseguido nas minas e ele pedia aos amigos, ameaçava os soldados, gritando no meio da missa, em pleno altar, entre nuvens de incenso. Mandava colocar os espanhóis no cepo, lhes prometia a forca se não lhe dessem o que pretendia. Medrosos, descontentes, infelizes, eles queriam ir embora mas Pedro de Valdivia não lhes permitia abandonar a cidade que fundara. Nem os doentes (que morressem ali), nem os velhos (que não chegariam vivos a seu destino).
          Um dia, porém, ele se fechou a quatro portas para conferenciar com outros capitães e Inés Suárez. Saiu tranqüilo, dizendo que partisse no navio Santiago, que chegara e regressaria ao Peru, todo aquele que assim o desejasse. Os homens ficaram alegres, esperançosos, na ilusão de poder reconstruir a vida no Peru ou na Espanha e, para isso, venderam tudo o que possuíam. Pedro de Valdivia ordenou que se fizesse o registro de todo ouro que seria embarcado e, já no porto, convidou os que partiam para um encontro de despedida. Reunidos perto das rochas a beira-mar, comiam e bebiam felizes à espera de partir. Então, Pedro de Valdivia lhes fez um discurso: Não se esqueçam de nós e não cheguem à Corte, difamando. Fomos irmãos e nós que não vamos, ficaremos lutando com as fomes, os frios e a solidão. Digam bem e não mal da terra que lhes deu o ouro que estão levando. Deixou que lhe corressem as lágrimas, emocionando os que o escutavam e se distanciou para caminhar perto do mar. Nesse insólito caminhar que lhe molhava os pé esperou pelos outros capitães que se uniram a ele. Mal trocavam palavras. Estavam pálidos, nervosos, olhando para os espanhóis que entre um trago e outro, entre um bocado e outro, riam despreocupados. Com dissimulo, aproximaram-se do bote que ali perto esperava, nele subiram céleres, dando ordem ao estarrecido remador de se afastar da margem. No silêncio da tarde, soaram os remos. Como num movimento de pássaros assustados, os soldados se agitaram, apontando para o mar, para o pequeno bote que se afastava na direção do barco ancorado onde já estava guardado o ouro que lhes pertencia e com o qual se escapava Pedro de Valdivia, deixando para trás os desventurados espanhóis já mais pobres e mesquinhos. Da praia, viram o bote se afastar, aparecer e desaparecer nas ondas até encostar no barco.

           Carlos Droguett em 100 gotas de sange y 200 de sudor  (Santiago de Chile, Zig-Zag, 1961) refaz, na ficção, a vilania do fundador do Chile que muitos historiadores – sempre há os que tudo aceitam e justificam – consideram uma espécie de picardia necessária para a conquista do Chile. Seu romance, que em nada se afasta da Crônica da Conquista, testemunha as blasfêmias e os insultos e o desespero dos homens lesados que se levantam diante do mar. Também, essa voz que se ergue para entoar uma pequena canção: linda voz que aumentava tenuemente e se estremecia na ponta de todas as mãos que apontavam, ao longe, o barco que se diluía no mar distante.
            Então, saíram todos da praia. Caminhavam, outra vez, em silêncio, sem ver. Apertados, feito nós, caminhavam. Saiu-lhes ao encontro, o tocador de trompete, perguntando se voltavam a Santiago porque ele também para lá estava voltando.

 

           “Canção na beira do mar” é o título  do capítulo que se inicia contando: estas coisas aconteciam no inverno de 1547. Pedro de Valdivia se dedicava à conquista das terras do Continente e precisava, sempre mais, de ouro para seguir adiante. Era-lhe muito pouco o conseguido nas minas e ele pedia aos amigos, ameaçava os soldados, gritando no meio da missa, em pleno altar, entre nuvens de incenso. Mandava colocar os espanhóis no cepo, lhes prometia a forca se não lhe dessem o que pretendia. Medrosos, descontentes, infelizes, eles queriam ir embora mas Pedro de Valdivia não lhes permitia abandonar a cidade que fundara. Nem os doentes (que morressem ali), nem os velhos (que não chegariam vivos a seu destino).

               Um dia, porém, ele se fechou a quatro portas para conferenciar com outros capitães e Inés Suárez. Saiu tranqüilo, dizendo que partisse no navio Santiago, que chegara e regressaria ao Peru, todo aquele que assim o desejasse. Os homens ficaram alegres, esperançosos, na ilusão de poder reconstruir a vida no Peru ou na Espanha e, para isso, venderam tudo o que possuíam. Pedro de Valdivia ordenou que se fizesse o registro de todo ouro que seria embarcado e, já no porto, convidou os que partiam para um encontro de despedida. Reunidos perto das rochas a beira-mar, comiam e bebiam felizes à espera de partir. Então, Pedro de Valdivia lhes fez um discurso: Não se esqueçam de nós e não cheguem à Corte, difamando. Fomos irmãos e nós que não vamos, ficaremos lutando com as fomes, os frios e a solidão. Digam bem e não mal da terra que lhes deu o ouro que estão levando. Deixou que lhe corressem as lágrimas, emocionando os que o escutavam e se distanciou para caminhar perto do mar. Nesse insólito caminhar que lhe molhava os pé esperou pelos outros capitães que se uniram a ele. Mal trocavam palavras. Estavam pálidos, nervosos, olhando para os espanhóis que entre um trago e outro, entre um bocado e outro, riam despreocupados. Com dissimulo, aproximaram-se do bote que ali perto esperava, nele subiram céleres, dando ordem ao estarrecido remador de se afastar da margem. No silêncio da tarde, soaram os remos. Como num movimento de pássaros assustados, os soldados se agitaram, apontando para o mar, para o pequeno bote que se afastava na direção do barco ancorado onde já estava guardado o ouro que lhes pertencia e com o qual se escapava Pedro de Valdivia, deixando para trás os desventurados espanhóis já mais pobres e mesquinhos. Da praia, viram o bote se afastar, aparecer e desaparecer nas ondas até encostar no barco.

          Carlos Droguett em 100 gotas de sange y 200 de sudor  (Santiago de Chile, Zig-Zag, 1961) refaz, na ficção, a vilania do fundador do Chile que muitos historiadores – sempre há os que tudo aceitam e justificam – consideram uma espécie de picardia necessária para a conquista do Chile. Seu romance, que em nada se afasta da Crônica da Conquista, testemunha as blasfêmias e os insultos e o desespero dos homens lesados que se levantam diante do mar. Também, essa voz que se ergue para entoar uma pequena canção: linda voz que aumentava tenuemente e se estremecia na ponta de todas as mãos que apontavam, ao longe, o barco que se diluía no mar distante.

                        Então, saíram todos da praia. Caminhavam, outra vez, em silêncio, sem ver. Apertados, feito nós, caminhavam. Saiu-lhes ao encontro, o tocador de trompete, perguntando se voltavam a Santiago porque ele também para lá estava voltando.

                        Manipulados, desventurados, empobrecidos, impotentes, outra vez pobres, deixavam para trás o mar e o barco que os libertaria para voltar ao ponto de onde haviam partido, uma cidade apenas desenhada. Já nesse distante ano, eles eram os acorrentados da miséria, os Sísifos do Continente.
 

      

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