de fome por não ter serventia ou
ocupação?
Não está morto quem
peleia é uma das últimas expressões de Brasil de Santa Cruz no longo
monólogo em que relata sua história: aventura num tempo e num espaço sem
limite, verdadeiro refazer do caótico, do absurdo, do inaceitável que se
constitui a realidade da maior parte dos homens do Continente. Nascido de mãe
escrava e pai liberto ou o contrário (ele não sabe ao certo) e tendo como
certeza apenas a herança – mulato de
cabelo bom, lábio fino, nariz afilado
e olho azul – seu caminho será feito somente de percalces. Esses que parecem
fantasia de desatinados: domínio de uns poucos, injustiças para quase todos. No
relato de seu viver trabalhoso, o Brasil
vai, cruamente, se mostrando no pequeno povoado sem escola, sem médico, sem
futuro; no hospital que recebe os doentes graves onde se acumulam os tísicos desenganados, coléricos, mórbidos,
raivosos incuráveis, nevróticos de guerra e paz, malucos de todos os matizes,
maleitados, queimados e aleijados dos mais diversos feitios, mutilados
intratáveis; no Ministério onde as promessas de emprego são feitas sem
nunca se concretizarem; na corriqueira prática de desalojar, com violência, os
moradores que têm as casas assentadas
sobre a riqueza alheia; no recrutamento à força em praias, aldeias, cidades
para preencher os quadros da armada nacional que se vê, então, povoada de tipos
de toda espécie; nas práticas escusas, permitindo a feitura de falsos
documentos, contrabandos, negócios ilegais; nos costumes de uma aldeia indígena
depois dizimada cruelmente pelos brancos; no engodo de uma campanha eleitoral;
no constatar das crenças que, astuciosamente, pregam a obediência e a resignação dos pobres e desvalidos; na presença do
malandro que passa o conto do pacote.
Como
se fossem uma grande aventura, as privações, as desditas que,
ininterruptamente, se sucedem, sem, no entanto, conseguir anular a alegria de
viver e a capacidade de tentar outra vez – e mais uma vez tentar sobreviver –
que fazem de Brasil de Santa Cruz uma expressão de múltiplos significados,
sempre perfeitos, no anseio de procurar entender os perenes e imensos
desacertos que, igual que a esperança, regem todos os seus itinerários.
Publicado
em 1983, pela Mercado Aberto de Porto Alegre,
Memorial de Santa Cruz, como
os demais romances de Sinval Medina (Liberdade provisória, Cara, Coroa, Coragem,
Tratado da altura das estrelas) se
enraíza no Brasil, se embebe do Brasil
que, desvendado, emerge em esboços imperfeitos, clamando por um sólido e
eficaz passar a limpo.
E
Sinval Medina, gaúcho de Porto Alegre, na força de sua engenhosa e hábil escrita,
induz a desejar que milagres aconteçam ou que seja permitido acreditar.
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