domingo, 9 de abril de 2000

Esse país.

                                                           que país é esse em que trabalhador morre
                                                         de fome por não ter serventia ou ocupação? 

                   Não está morto quem peleia é uma das últimas expressões de Brasil de Santa Cruz no longo monólogo em que relata sua história: aventura num tempo e num espaço sem limite, verdadeiro refazer do caótico, do absurdo, do inaceitável que se constitui a realidade da maior parte dos homens do Continente. Nascido de mãe escrava e pai liberto ou o contrário (ele não sabe ao certo) e tendo como certeza apenas a herança – mulato de cabelo bom, lábio fino, nariz afilado e olho azul – seu caminho será feito somente de percalces. Esses que parecem fantasia de desatinados: domínio de uns poucos, injustiças para quase todos. No relato  de seu viver trabalhoso, o Brasil vai, cruamente, se mostrando no pequeno povoado sem escola, sem médico, sem futuro; no hospital que recebe os doentes graves onde se acumulam os tísicos desenganados, coléricos, mórbidos, raivosos incuráveis, nevróticos de guerra e paz, malucos de todos os matizes, maleitados, queimados e aleijados dos mais diversos feitios, mutilados intratáveis; no Ministério onde as promessas de emprego são feitas sem nunca se concretizarem; na corriqueira prática de desalojar, com violência, os moradores que têm as casas assentadas sobre a riqueza alheia; no recrutamento à força em praias, aldeias, cidades para preencher os quadros da armada nacional que se vê, então, povoada de tipos de toda espécie; nas práticas escusas, permitindo a feitura de falsos documentos, contrabandos, negócios ilegais; nos costumes de uma aldeia indígena depois dizimada cruelmente pelos brancos; no engodo de uma campanha eleitoral; no constatar das crenças que, astuciosamente, pregam a obediência e a resignação dos pobres e desvalidos; na presença do malandro que passa o conto do pacote.

                        Como se fossem uma grande aventura, as privações, as desditas que, ininterruptamente, se sucedem, sem, no entanto, conseguir anular a alegria de viver e a capacidade de tentar outra vez – e mais uma vez tentar sobreviver – que fazem de Brasil de Santa Cruz uma expressão de múltiplos significados, sempre perfeitos, no anseio de procurar entender os perenes e imensos desacertos que, igual que a esperança, regem todos os seus itinerários.

                        Publicado em 1983, pela Mercado Aberto de Porto Alegre,  Memorial de Santa Cruz, como os demais romances de Sinval Medina  (Liberdade provisória, Cara, Coroa, Coragem, Tratado da altura das estrelas)  se enraíza no Brasil, se embebe do Brasil  que, desvendado, emerge em esboços imperfeitos, clamando por um sólido e eficaz passar a limpo.

                        E Sinval Medina, gaúcho de Porto Alegre, na força de sua engenhosa e hábil escrita, induz a desejar que milagres aconteçam ou que seja permitido acreditar.

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