domingo, 23 de abril de 2000

Notas de tradução:Cien sonetos de amor . 3

          As vezes, é exigido pela métrica do verso ou pelo ritmo da frase, pelo desejo de oferecer um sentido inequívoco ou uma expressão harmoniosa. Outras tantas, mera opção pessoal do tradutor, que assim, com os desvios (afastamento entre o idioma original e o idioma traduzido, segundo Erwin Theodor), distancia do texto original aquele que refaz em outra língua.
            Ao traduzir Cien sonetos de amor de Pablo Neruda (Buenos Aires, Losada, 1965), Carlos Nejar, conduzido pela negligência, não se deixou intimidar. E, dos desvios, abundantemente se serviu, espalhando-os, às mãos cheias, em cada poema que a L & PM de Porto Alegre ofereceu, em 1999, sem buscar perfeições, aos leitores.
            Assim, além dos inúmeros erros crassos, ocorridos a nível de vocabulário, o texto português de Cien sonetos de amor, também, se afasta do original no que se refere à sintaxe: palavras são eliminadas, palavras são acrescidas, palavras tem suas funções sintáticas mudadas.

            Pode ocorrer que na eliminação de um pronome do verso, não tenha havido, realmente, mudança de sentido, mas diminuição da força poética. É o que ocorre no poema XXVI: te odio sin fin, y odiantote te ruego que, na tradução, certamente evitando a repetição de sons, “te odeio sem fim, e odiando-te rogo”, deixa sem clareza a quem o rogo é dirigido. Igualmente, diminuída a intensidade na eliminação do pronome tu do verso era que tú de pronto eras ausente: “era que de repente estavas ausente”. Nos casos em que houve acréscimo, porém, a mudança de sentido é inegável. Assim, no verso do poema LXIII em que o aposto la flor por el mar enterrada se transforma em predicativo do sujeito: é flor pelo mar enterrada e do verso do soneto XXII em que o acréscimo do advérbio não exprime, exatamente, o contrário do verso no original: pero yo ya sabía cómo eras: “Mas eu já não sabia como eras”.

          Sobretudo, em relação à sintaxe, o que sobressai são as mudanças de lugar dos termos da oração, em alguns casos justificadas pela eufonia. Em outros, parecem efetuar-se, sem uma razão precisa como, por exemplo, a colocação do adjetivo anteposto ao substantivo ( tus huellas digitales por “tuas digitais pisadas”, soneto XXXIX; ou pétalos dichosos por “ditosas pétalas”, soneto XLVII) que não apenas contraria o original como o que é usual em português. Muitas vezes, essa troca de lugar dos termos da oração, aparece como uma prática aleatória: tus ojos tienen color de luna por “ tem cor-de-lua teus olhos (soneto VIII); todo fue estrella por “foi tudo estrela (soneto XXIV); me cercaba sin tregua por “sem trégua me cercava “(soneto III), convertida por fin en amapola, por “por fin em amapola convertida” (soneto XCVI). Ainda há casos em que a mudança de lugar ocasiona, também, uma mudança de sentido: no soneto X, o poeta diz que o beijos da amada são frescos como melancia. Na tradução, o advérbio de comparação muda de lugar e os beijos são, então, comparados a “frescas melancias”. ( Son tus besos frescos como sandías por “são teus beijos como frescas melancias”.)

         E, também, acontecem os casos em que um substantivo é substituído por um verbo (tu risa desarrolla tu trino de palmera por “teu riso desenvolve seu trinar de palmeira” soneto XXXVIII), um artigo indefinido por um possessivo ( con una pluma por  “com tua pluma”, soneto C), um tempo de verbo por outro (zumbavam las avispas por “zumbem as abelhas”, soneto XXXIX).

        Na verdade, estes desvios, como os que ocorreram em relação ao vocabulário, se apresentam todos como a expressão perfeita de uma mentalidade de descaso que não envolve apenas a obra traduzida, mas também o leitor a quem essa obra é dirigida.

 

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