
E´um feito tão
extraordinário que poderia se inscrever numa dessas admiráveis ficções do
Continente. Dois mil quilômetros, palmilhados com denodo, vencendo rios e
pântanos, planícies desérticas e calor e chuva e enfrentando perseguidores em
lutas desiguais: a Coluna Prestes que durante dois anos e meio percorreu o
Brasil, partindo do Rio Grande do Sul e que os brasileiros, salvo as sempre
raras exceções, desconhecem. E, assim, tampouco perceberá sua presença no
romance de Sinval Medina (Porto Alegre,
Mercado Aberto, 1983), Memorial de Santa
Cruz. Nele, construído à imagem e semelhança de um sem número de
brasileiros, Brasil de Santa Cruz relata a sua aventurosa e sofrida vida. Há um
momento em que trava relações com um ex-combatente da tal coluna e das conversas que
teve com ele se dá conta que, mesmo sem o querer, acabaria a ela se
integrando o quê, de fato, veio a acontecer. Circunstâncias o levam a presença
do comandante da coluna para quem, após contar a sua história, se declara
interessado na luta pela liberdade e desejoso de colocar a serviço daquele exército o quê sabia e o quê podia fazer como homem de
armas. Foi incorporado, recebendo as instruções: o
regulamento disciplinar, bastante
rígido onde pontificava o respeito às
famílias e às propriedades encontradas
nas vilas, fazendas e cidades atravessadas pela coluna. Gravemente punidos
os estupradores e ladrões e também aqueles que demonstrassem falta de bravura
ou de zelo no cumprimento do dever. Destinado ao segundo esquadrão, Brasil de
Santa Cruz logo fez amizade com dois componente da Coluna – o Fininho, mestre
na pontaria e o Azulão, famoso degolador – e como todos, sem hesitações ou reclamos faz as léguas e léguas diárias,
eludindo os soldados federias, a tropa
da polícia e os bandos de jagunços. Com detalhes, relata o seu batismo de fogo
e a continuação da marcha, sempre estafante e difícil numa rapidez desnorteante
para os perseguidores. E, também, as marchas que se seguiram, na inclemência do
sol, na rudeza do terreno – e a planície seca
e a catinga de vegetação raquítica e o deserto árido e fantasmado- na alimentação frugal e insuficiente. E o
esforço de dormir ao relento, na espectativa de um ataque de surpresa, de
avançar em meio a um tremedal no meio da noite, de se adentrar em território
inimigo em busca de alimento para a tropa, de enfrentar traições num renovar de
lutas sempre ferrenhas, quase sempre na solidão dos despovoados ou na
insegurança de possíveis tocaias quando entre estranhos.
Como em todo o romance, este
relato de Brasil de Santa Cruz sobre a sua
participação na tal coluna é
ágil e pleno de vivacidade e emoção.
Fiel a si mesmo, ele se deixa envolver pelo entusiasmo dos companheiros e, como eles, suporta as canseiras
de uma vida de carências e perigos. E como eles, é valente nas lutas, por vezes
heróico. E o relato que faz sobre a sua participação na tal coluna,como em todo o seu longo monólogo é ágil e pleno de vivacidade
e emoção. Mas, nem por isso perde a objetividade e os que saem o quê deveras
aconteceu na longa marcha da Coluna Prestes podem, facilmente, discernir na sua
narrativa a crônica dos fatos, embora, personagem romanesco, lhe sejam
permitidas digressões quando, então, conta as suas experiências eróticas ou
amorosas. Porém, logo é como se o
testemunho fosse retomado: quando a decisão do comandante dá por terminada a campanha e decide pedir
abrigo a um país fronteiriço, Brasil de Santa Cruz faz parte dos que, já em
terra alheia, se dispõe, ainda outra vez, a tentar a vida. E, então, novos e
malfadados sucessos o esperam.
A tal coluna , invicta, ainda
que constituída de soldados já sem armas e sem munições, ao atravessar o rio
que separa os países começa a se partir como
cobra de vidro . Findara-se o tempo para aqueles que, no dizer de Brasil de
Santa Cruz, se haviam atribuído o papel
de arautos da chama revolucionária.
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