domingo, 16 de abril de 2000

A tal coluna.

 
           E´um feito tão extraordinário que poderia se inscrever numa dessas admiráveis ficções do Continente. Dois mil quilômetros, palmilhados com denodo, vencendo rios e pântanos, planícies desérticas e calor e chuva e enfrentando perseguidores em lutas desiguais: a Coluna Prestes que durante dois anos e meio percorreu o Brasil, partindo do Rio Grande do Sul e que os brasileiros, salvo as sempre raras exceções, desconhecem. E, assim, tampouco perceberá sua presença no romance de Sinval Medina  (Porto Alegre, Mercado Aberto, 1983), Memorial de Santa Cruz. Nele, construído à imagem e semelhança de um sem número de brasileiros, Brasil de Santa Cruz relata a sua aventurosa e sofrida vida. Há um momento em que trava relações com um ex-combatente da tal coluna e das conversas que  teve com ele se dá conta que, mesmo sem o querer, acabaria a ela se integrando o quê, de fato, veio a acontecer. Circunstâncias o levam a presença do comandante da coluna para quem, após contar a sua história, se declara interessado na luta pela liberdade e desejoso de colocar a serviço daquele exército  o quê sabia e o quê podia fazer como homem de armas. Foi incorporado, recebendo as instruções:  o regulamento disciplinar, bastante rígido onde pontificava o respeito às famílias e às propriedades encontradas nas vilas, fazendas e cidades atravessadas pela coluna. Gravemente punidos os estupradores e ladrões e também aqueles que demonstrassem falta de bravura ou de zelo no cumprimento do dever. Destinado ao segundo esquadrão, Brasil de Santa Cruz logo fez amizade com dois componente da Coluna – o Fininho, mestre na pontaria e o Azulão, famoso degolador – e como todos, sem hesitações ou reclamos faz as léguas e léguas diárias, eludindo  os soldados federias, a tropa da polícia e os bandos de jagunços. Com detalhes, relata o seu batismo de fogo e a continuação da marcha, sempre estafante e difícil numa rapidez desnorteante para os perseguidores. E, também, as marchas que se seguiram, na inclemência do sol, na rudeza do terreno – e a planície seca  e a catinga de vegetação raquítica e o deserto árido e fantasmado- na alimentação frugal e insuficiente. E o esforço de dormir ao relento, na espectativa de um ataque de surpresa, de avançar em meio a um tremedal no meio da noite, de se adentrar em território inimigo em busca de alimento para a tropa, de enfrentar traições num renovar de lutas sempre ferrenhas, quase sempre na solidão dos despovoados ou na insegurança de possíveis tocaias quando entre estranhos.
Como em todo o romance, este relato de Brasil de Santa Cruz sobre a sua  participação na tal coluna é ágil e pleno de vivacidade e emoção.  Fiel a si mesmo, ele se deixa envolver pelo entusiasmo dos  companheiros e, como eles, suporta as canseiras de uma vida de carências e perigos. E como eles, é valente nas lutas, por vezes heróico. E o relato que faz sobre a sua participação na tal coluna,como em todo o seu longo monólogo é ágil e pleno de vivacidade e emoção. Mas, nem por isso perde a objetividade e os que saem o quê deveras aconteceu na longa marcha da Coluna Prestes podem, facilmente, discernir na sua narrativa a crônica dos fatos, embora, personagem romanesco, lhe sejam permitidas digressões quando, então, conta as suas experiências eróticas ou amorosas. Porém, logo é como se o  testemunho fosse retomado: quando a decisão do comandante  dá por terminada a campanha e decide pedir abrigo a um país fronteiriço, Brasil de Santa Cruz faz parte dos que, já em terra alheia, se dispõe, ainda outra vez, a tentar a vida. E, então, novos e malfadados sucessos o esperam.
A tal coluna ,  invicta, ainda que constituída de soldados já sem armas e sem munições, ao atravessar o rio que separa os países começa a se partir como cobra de vidro . Findara-se o tempo para aqueles que, no dizer de Brasil de Santa Cruz, se haviam atribuído o papel de arautos da chama revolucionária.

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