domingo, 26 de março de 2000

O inverno.


Assim era aquele inverno para os espanhóis. A neve os isolava de toda esperança e nem ruídos para salvá-los ou matá-los deixavam passar a chuva amortecedora ou o vento fustigante. O vento se punha a dançar no interior dos ranchos e se açoitava furioso nas poucas coisas de utilidade que enfeitavam a vida dos espanhóis. A chuva – quase nenhuma casa possuía teto - descia melodiosa sobre o pedaço de terra que escolhia cada espanhol para deitar  seus ossos. 

Eles vieram em busca de riquezas, em busca de terras, em busca de ouro.  Aventureiros, um amontoado deles que, sob o mando de Pedro de Valdivia, fundaram Santiago. Enfrentaram os índios e os próprios conflitos feitos da inveja, da ambição desvairada, da traição. Mas tiveram que se haver, também, com a fúria dos elementos ante os quais se apresentaram sem defesa: as casas feitas de barro resultaram frágeis e os poucos bens que trouxeram consigo foram consumidos pelo incêndio.

Em 100 gotas de sangre y 200 de sudor (Santiago, Zig-Zag, 1961), Carlos Droguett mostra esses conquistadores do Continente como homens comuns, que ao escolherem o caminho da aventura e do desconhecido, se comprometeram, antes de mais nada, com a luta pela sobrevivência.

Logo depois da destruição de Santiago pelos índios, em 1541, eles mal têm o que comer ou o que vestir quando o inverno começa a alvoroçar  as primeiras brisas. Uma tarde, cresce um vento grandioso, faz ranger as árvores, faz voar pedaços de ramos e perfumes, faz dançar as nuvens. Nuvens negras que se abrem sobre as casas para com sua água lenta, precisa, descansada ir roendo as paredes, deixando-as moles para logo se entreabrirem em rangidos silenciosos. E a água se enfia pelas frestas das portas e empapa o chão onde a chuva ainda não chegou. Afogados na água, os colchões desfeitos, as cadeiras rústicas, os andrajos, a palha dos leitos, as mantas que haviam sobrado do incêndio se desfazem. Uma chuva que não amaina em longos meses quando, entre  tormentas e ventanias geladas, o dia amanhece. Uma chuva que ao cair, persistente, sem trégua, limita o olhar e os suspiros, exaspera os nervos, neutralizando as maldições, desvanecendo as lembranças do mundo que foi deixado para trás, um mundo em que havia ruas, casas, verdadeiras ruas, verdadeiras casas.

Pedro de Valdivia, enraivecido na sua impotência diante dos elementos, a eles não quer se submeter; seus homens, um bando de desesperados, apalpam, com medo, as paredes golpeadas pela chuva e ficam na espera da inevitável destruição. As armas e o ânimo belicoso não lhe são de ajuda nesse contínuo e constante soprar do vento e cair da água, nesse escutar o eterno barulho da tempestade.

Carlos Droguett, na liberdade que lhe outorga a ficção, não separa da Conquista essa verossímil realidade que dela fez parte: o medo, a solidão, a fome, o calor, a chuva, o frio e que se constitui uma verdadeira épica da desventura. Povoada de vencidos num mundo em que todos chegaram para subjugar. 

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