domingo, 5 de março de 2000

As vivandeiras.


As nossas vivandeiras marchavam “lindo”, como dizem os gaúchos. Passavam Herminia com sua cadela dentro de uma estopa, a tiracolo; Santa Rosa, com o “José, filho da Revolução” escarranchado num quarto e muitas vezes cavalgando o pescoço de algum soldado: a velha Joana, pequenina e gorducha, atolando-se lamentavelmente  até o seios; a Onça, maxixando na lama; Cara de Macaca, carregando o fuzil do companheiro; Chininha, obesa como certo senador de Sergipe, andarilha sem igual, apesar de suas avantajadas banhas de mulata. Moreira Lima Lourenço no seu Diário.
 

                        No oitavo capítulo de A coluna Prestes (Paz e Terra,  São Paulo,1997),  Anita Leocádia Prestes observa que o Tenentismo foi sempre  considerado um movimento dos jovens oficiais do exército e nunca pensado quanto à participação dos soldados que desse movimento participaram. No seu entender, o efêmero das ações não produziram, um tipo de movimento ou organização que pudesse adquirir alguma estabilidade e, assim, permitir que uma atuação dos comandados pudesse se revelar.

                        O caso da Coluna Prestes foi uma exceção. Tanto pelo  tempo que durou, dois anos e três meses, como pela adoção de uma guerra de movimento e pelo seu funcionamento interno. Uma originalidade – ter sido um exército guerrilheiro – que  permitiu a seus soldados deixar de ser um mero cumpridor de ordens para se transformar num combatente consciente de que estava lutando por um ideal de liberdade e justiça para o povo brasileiro.  Embora tais conceitos pudessem lhe ser vagos ou confusos foram assumidos e responsáveis por muitas ações brilhantes e corajosas. Sem dúvida, a força e o entusiasmo que levavam a Coluna Prestes adiante não era usual entre os que faziam parte do exército regular que lhe dava caça. Um motivo a mais para levar Anita Leocádia Prestes a querer elucidar a real participação dos soldados na longa marcha pelo território nacional. Naturalmente, ela  irá se deparar com a dificuldade das fontes pois, se para o estudo qualitativo elas existem amplas e variadas, o mesmo não acontece no que diz respeito ao estudo quantitativo, fundamental para conhecer a participação dos comandados nos processos históricos. Ainda assim, houve condições de auferição de dados que lhe permitiram concluir ter sido  marcadamente popular a origem da grande maioria dos combatentes. Como também lhe foi possível,  a partir dessa pesquisa, obter informações adicionais sobre a participação feminina na Coluna Prestes.

          Ao longo da marcha em que vai-se efetivando o avance pelo  território ( Santa Catarina, Paraná, São Paulo, Mato Grosso, Goiás, Maranhão, Piauí, Bahia)  entre as infindáveis dificuldades advindas das condições do espaço físico – e os rios para atravessar e os charcos e  a lama e os matos  fechados – e da precariedade do dia a dia e das lutas que iam sendo travadas, a presença feminina é raras vezes mencionada.  A primeira referência é a essas mulheres humildes que, em São Luiz Gonzaga, onde estavam os  revolucionários gravitam em torno dos acampamentos e acabam, umas vinte, a eles se incorporando. Temendo que fossem perturbar o funcionamento da tropa, Luiz Carlos Prestes determina que elas fiquem no Rio Grande do Sul. Quando, porém, o último a atravessar o rio Uruguai, ele chega às margens de Santa Catarina, elas já estavam todas lá. Acompanhando os maridos ou os amásios,  se dispunham a enfrentar não apenas as duras condições de uma vida errante como os perigos inerentes aos enfrentamentos armados. De algumas foram ditos os nomes: Hermínia e Elza que se ocupavam dos doentes, indo buscá-los em meio aos fogos cruzados ou se ocupando deles em pleno combate. A “ Onça”, dançarina de maxixe que salvou uma tropa em perigo; Santa Rosa, que servia de polícia secreta contra as mulheres. Pouco antes de entrar em Mato Grosso, ela teve um menino e em vinte minutos estava a cavalo para seguir com a tropa que vinha com o inimigo no seu encalço; Alzira e  Pisca Pisca, propensas às bebedeiras e aos escândalos; Tia Maria, cozinheira que acabou sendo cruelmente morta pela polícia da Paraíba. Mas, da maioria – foram cinqüenta mulheres das quais trinta, comprovadamente fizeram a Marcha, dez tendo chegado até à Bolívia – os perfis e as ações se perderam em histórias que não foram contadas. E seus dias  de lutas e privações foram como se não tivessem existido. No entanto, se fosseo possível ter lhes seguido os passos, isto significaria, certamente,  aproximar-se a seres generosamente disponíveis aos quais a vida apenas concedeu a oportunidade da dádiva, feita, então, aos que dela demonstraram necessitar.  Jogando a vida, compartilharam o entusiasmo da Coluna Prestes por uma causa que, oriundas de um pobre mundo, certamente desconheciam. Não eram diferentes dos homens a quem acompanhavam. No todo, um punhado de gente que se impregnou do país, numa caminhada de espantos. Epopéia diluída na imensidão do pais e de sua indiferença. 

 

 

 

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