domingo, 29 de agosto de 1999

Ana Aurora, a precursora.

          Foram muitos poemas, muitas peças de teatro e discursos, conferências e crônicas que, na sua longa vida, Ana Aurora do Amaral Lisboa, escreveu.
         
           Formada pela Escola Normal da Província de São Pedro, de Porto Alegre, em 1881, inicia, logo a seguir o magistério, um trabalho que motivou toda a sua vida. Zahidé Lupinacci Muzart, no estudo que lhe dedica,  parte do volume  Escritoras brasileiras do século XIX que organizou para a Edunisc de Santa Cruz do Sul e Editora Mulheres de Florianópolis,  publicado neste ano, a apresenta como a mulher que em tudo imprimiu a marca de seu caráter altivo, franco e audaz. Sobretudo, se for considerado – e a  isso se refere a articulista – o ambiente em que viveu Ana Aurora do Amaral Lisboa, uma pequena cidade do interior do Rio Grande do Sul - e não  é difícil imaginar - dominada pelos seus preconceitos e por aqueles próprios da época. Assim, o primeiro livro publicado por Ana Aurora do Amaral Lisboa tem por título  Minha defesa  e reúne artigos já publicados na imprensa e entre eles um breve texto, transcrito por Zahidé Lupinacci Muzart, no qual fala de seus deveres, de como se dedica ao trabalho sem jamais ser abatida por ele ou pelos reveses da vida o que a faz consciente de pertencer ao número dos fortes.

          Na verdade, ela sabe o que deseja e o seu querer, imperioso, se expressa em palavras e em ações.  Da palavra, usou para educar, para instruir, para lutar. O seu teatro, diz Zahidé Lupinacci Muzart, tinha objetivos moralistas e pedagógicos; suas crônicas, falam sobre a honra, a liberdade, sobre a mulher;  sua poesia, comprometida politicamente, está ligada à História do Rio Grande do Sul. Do conhecimento, serviu-se para ensinar e o título de “Grande Mestra” recebido da comunidade rio-pardense, homenageia uma dedicação que, inclusive, se mostra na fundação do curso noturno em que, gratuitamente, alfabetizava adultos, constituindo-se, então, no dizer de Zahidé Lupinacci Muzart, a fundadora dos cursos noturno no Brasil. Isto é, algo realmente, digno de admiração pois nasceu Ana Aurora do Amaral Lisboa em Rio Pardo, no ano de 1860 e, exceção feita do tempo de estudos em Porto Alegre, aí passou a vida inteira, escrevendo, ensinando, lutando, mostrando caminhos. E desejar que todos saibam ler e trabalhar para que tal aconteça, é mostra perfeita de como esteve, de longe, à frente de seu tempo.

          Deveras, muito à frente porque a erradicação do analfabetismo no Brasil não parece ter sido uma das preocupações dos governos que se sucederam e sucedem haja visto os milhões de brasileiros que ainda não sabem ler. Evidentemente, entre eles não se contam aqueles que a prisão econômica impede de ter acesso à leitura e que, junto com os que sabem ler e não lêem, formam a população alienada do país: aquela que, sobre tudo por ignorância, permite que nele tudo aconteça a sua revelia. Neutralizam, assim,  o imprescindível  princípio que diz serem todos iguais, possibilitando então, que  uns sejam mais iguais do que outros.

domingo, 22 de agosto de 1999

O canto da Juriti.

           Numa co-edição da Editora Mulheres de Florianópolis e da Editora Movimento de Porto Alegre, foi publicado no ano passado, Sorrisos e prantos de Rita Barém de Melo. Trata-se de uma edição baseada na primeira e única que apareceu, postumamente, em 1868, na cidade do Rio Grande. Agora, com o texto atualizado por Rita Terezinha Schmidt que assina, também, a Introdução, esses versos da poetisa gaúcha podem, finalmente, ser conhecidos o quê a edição do século passado pouco permitiu até porque – e são palavras de Rita Terezinha Schmidt – as obras dos escritores sul-riograndenses, via de regra, têm sido marcados historicamente por uma posição de invisibilidade no cenário da  cultura nacional. Assim, ao possibilitar a leitura de Sorrisos e prantos, as editoras estarão, também, ensejando – e é preciso pensar na pesquisa que está sendo feita nos cursos de Mestrado e Doutorando – uma devida e cuidadosa apreciação crítica  que lhe tem sido, como à obras de outras poetisas brasileiras do século XIX, continuamente, negado. No  estudo que lhe dedica, Rita Terezinha Schmidt esboça algo de sua biografia – Rita Barém de Melo nasceu em Porto Alegre em 1840, seus estudos não foram, como era próprio da época, além do curso primário, se casou aos dezessete anos, teve dois filhos que morreram ainda crianças e faleceu aos vinte e oito anos na cidade do Rio Grande – cujas contingências, acredita, não podem ser separadas de uma personalidade marcada pela dor, pelo abandono, pela solidão.

          Rita Barém de Melo teve seus primeiros versos publicados aos dezesseis anos no semanário O Guaíba de Porto Alegre, sob o pseudônimo de  Juriti, o pássaro brasileiro de fundo de quintal e das roças do interior, de canto agradável e nostálgico. Ao identificar-se com o seu canto, Rita Barém de Melo como que enuncia ser o seu um versejar ingênuo e espontâneo. Aproximar-se dele é perceber  o quanto é expressão das perdas sofridas pelas mortes e separações, ou dessa dor de viver marcada pela solidão e pelas saudades ou de reflexões sobre um mundo de mentiras e amargor. Também, o quanto pode ser expressão de vida.

           Dominado pelo desencanto que não condiz com os seus dezesseis anos, o poema “Pra que viver-se”. Seus primeiros versos – “Pra que viver-se uma vida/ Que a morte irá matar?/Pra que viver-se a existência/Se num túmulo irá findar? – interrogam, afirmando algo  sem dúvida  inerente à condição humana,  sua única certeza: o efêmero da existência. Nos versos seguintes, em cada estrofe, a reafirmação de que tudo (o fogo que nos alenta, o que nós sentimos, o viço das flores d’alma, a esperança ditosa, a flor da vida) é transitório. Termina aconselhando: Ah! Não choremos a vida/Que ela sempre findará/  Não rossiemos de pranto/O que a morte beijará. Fatalismo  que está em acorde com  expressões  que pontilham seus versos (flores de dor, dor profunda, flor de tristeza, pungente tristor)  e , também,  em acorde com outros poemas em que a poetisa se mostra sem ilusões diante de um mundo que percebe como fingido e traidor. Mas que, no entanto, não a vence. O poema “Não dobra a vontade de meu coração”, revela que embora ferida,  Rita Barém de Melo, comparando-se ao carvalho resiste às intempéries da vida e não se dobra, não se abate, não verga, nem quebra mas se mantém soberba e altiva. O que a leva,  a ser, então, senhora de versos  iluminados, verdadeiros cantos de amor e de amor à vida. Assim, o poema “Como eu te amo” em que as onze primeiras estrofes,  nas perguntas feitas ao ser amado, dizem sobre a imensidão (como contar as estrelas do céu? quantas vagas nascem e morrem no mar? quantas nuvens despontam na aurora ? quantas flores reverdessem?) desse amor que lhe é dedicado. Nas outras três, finalizando o poema,  o testemunho da alegria de amar: a cisma, o sonho, a ventura, as esperanças, os enlevos.  Sem dúvida, um poema de feliz inspiração e tanto quanto ‘Pra que viver-se”, escrito no ano de 1856. Neles, a alegria  intensa e a profunda tristeza constroem essa dualidade luz e sombra que o título do livro, Sorrisos e prantos, sintetiza. Dualidade a sugerir nuanças numa poesia que, certamente, ainda guarda, por desconhecida, muitos de seus segredos.

domingo, 15 de agosto de 1999

Cartas da Alemanha


                        No ano de 1857, foi publicado pela Firmin Didot Frères, em Paris, Itinéraire d’ un voyage en Allemagne de Nísia Floresta. Em português, só irá aparecer em 1982,  traduzido por Francisco Chagas Pereira, numa edição da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. No ano passado, em cuidadoso trabalho da Editora Mulheres de Florianópolis, com uma excelente apresentação de Constância Lima Duarte, é novamente editado.

                        Em  trinta e quatro cartas, datadas, a primeira, de 26 de agosto de 1856, Bruxelas e a última de 30 de setembro, Estrasburgo, do mesmo ano, Nísia Floresta dá conta minuciosamente dos lugares visitados e de seus estados de espírito. Assim, há notas sobre o aspecto das cidades, sobre os museus, sobre parques e jardins, sobre a paisagem. Também, sobre as melancolias e tristezas e saudades que afloram a seu espírito, motivadas pelo escutar de uma bela música ou pelo vislumbrar de alguma imagem. 

                        Quase sempre é um registro que se ancora nas suas emoções. Pontilhado de adjetivos elogiosos (belo, gracioso, encantador, magnífico, majestoso, lindíssimo), diz do que lhe agrada e, rara vez, se permite emitir uma crítica e, quando o faz, está a visar o luxo desenfreado, presente numa rica mesa de jogo ou o luxo frívolo que  se ostenta do trabalho cansativo e absorvente das rendeiras cujo ganho nada mais é do que uma minguada quantia.

                        Mas, é, sobretudo, quando visita as cidades alemãs, depois de ter passado  por Bruxelas, Liège e Spa que Nísia Floresta se deixa conquistar. Em 31 de agosto, escreve: eis-me no solo tão desejado da Alemanha. Uma semana depois, já deseja se fixar em  Frankfurt, lamentando ter, com grandes despesas,  montado uma casa em Paris pois, quanto mais conhece a Alemanha, mais aprecia o modo e os costumes de vida de seus habitantes e mais se convence que é junto com o povo alemão que deseja viver. E descobre-lhe inúmeras qualidades: seriedade afabilidade, probidade de caráter, sensibilidade, hospitalidade, espírito filosófico, franqueza, polidez, amabilidade, sinceridade. A elas se acrescenta o que chama de maravilha do trabalho e do gênio humano, responsável, sem dúvida, por essa beleza da paisagem que é fruto do trabalho do homem: os jardins e os parques, as flores e os pomares.

                        E há referência à História, guardada nos museus e nos objetos de arte e nos castelos e igrejas; e há a lembrança dos gênios da música e dos poetas. Por vezes, a emoção diante de um entardecer, ou do prazeroso copo de vinho, servido diante do rio. Vivências que se entrelaçam à saudade constante que sente dos seus e cuja expressão, um eu que se confessa, não permite diluir-se no testemunho e na narrativa, esse estado de alma que fez do itinerário de viagem de Nísia Floresta um olhar que é, mais que tudo, voltado para si mesma.

domingo, 8 de agosto de 1999

O estado de espírito.

         Ele foi um sábio ancião. Tinha noventa e nove anos e a família , dele se orgulhava  por longevo. Mas, da família , ele estava farto e, numa dessas comemorações domésticas, envenenou o barril de chope. Salvaram-se os leais consumidores de coca cola. Tarde demais, lamentava-se o velho: “- Mas como é possível passar o resto da vida com esses? Com gente assim? Porque a coca cola não é verdadeiramente uma bebida, a coca cola é um estado de espírito”. E, assim constatando, sábio como era, o ancião se suicidou.

          Esta história deveras é de Mário Quintana e faz parte de “O Caderno  H”, publicado pelo  suplemento “ Letras & Livros” do Correio do Povo de Porto Alegre, no dia 24 de outubro de 1981.

         Na verdade,  a partir da primeira garrafinha de coca cola que apareceu no  Brasil, precedida de muita publicidade nas páginas  do Reader Digest, nessa distante década de 50, foi-se modelando uma forma de ser que pretende, como modelo  acabado seguir o que é considerado aceitável pelo grande e inquestionável país do Norte. Não apenas  no modo de vestir, de comer, de se portar, de se expressar mas, sobretudo,  no de perceber o mundo e tudo que lhe diz respeito.

           Nesse ínterim houve, também, uma frase, possivelmente definitiva ,pois foi aceita por quase todos (daí serem muito, mas muito honrosas as exceções) os brasileiros aptos a escolher o tipo de vida que pretendem levar (bem distantes desses outros que apenas conseguem sobreviver), verdadeira obra prima de entreguismo: “o que é bom para os Estados Unidos é bom para o Brasil”. Naturalmente, a esse pensar e a esse crer, sucedeu-se a avalanche de imitações e de adoções de gostos alienígenas dos quais o consumo da coca cola  parece ser o mais expressivo e conforme tudo indica, irreversível, até porque resulta ser uma inquestionável preferência mundial.

              Dessa maneira, tudo leva a pensar que Mário Quintana esteve coberto de razão quando escreveu “O supremo castigo”, também parte de “ O Caderno H” e, também publicado pelo “Letras & Livros” do Correio do Povo de Porto Alegre no dia 29 de agosto de 1981: “Em todos os aeródromos, em todos os estádios, no ponto principal de todas as metrópoles existe – quem é que não viu? – aquele cartaz. De modo que, se esta civilização desaparecer e seus dispersos e bárbaros sobreviventes tiverem de recomeçar tudo desde o princípio – até que um dia também tenham os seus próprios arqueólogos – estes hão de encontrar, nos mais diversos pontos do mundo inteiro, aquela mesma palavra. E pensarão eles que Coca Cola era o nome de nosso Deus”.

domingo, 1 de agosto de 1999

Os intocáveis.

           Era, certamente, intocável. Felipe II havia a ele recorrido para fundar Montevidéu. Prestou-se a inverter nessa aventura, uma importância inconcebível que jamais lhe foi reembolsada. Depois, recebeu posse de enormes extensões de terra. E, dele, queriam se queixar ao Rei da Espanha, os canários que, embarcados num de seus navios, fizeram a travessia do Atlântico para aportar em Montevidéu, famélicos, sujos e maltrapilhos.

           A Coroa espanhola havia pago oitenta pesos por passageiro mas, no barco de Francisco de Alzáybar foram considerados coisas e não seres humanos e, como carga, amontoados em espaços reduzidos, sofrendo o racionamento de água e de alimentos e à mercê das intempéries. Quando desembarcaram pareciam espectros: pálidos, macilentos, desgrenhados, os rostos emagrecidos, os olhos cavernosos.

           Dos que, na beira do cais, os estavam esperando, receberam auxílio e consolo e, aos poucos, foram organizando, nessa América dos sonhos de prosperidade, os seus dias. Então, houve aqueles que falaram em protestar diante da Coroa pelo tratamento indigno recebido pois, assim, talvez, tais viagens não mais se repetiriam.

           Não constam das crônicas se tais protestos se concretizaram. Mas, como diz Milton Schinca no seu livro Boulevard Sarandi (Montevideu, Ediciones de la Banda Oriental, 1978) onde relata o episódio: De qualquer maneira, salta à vista que, diante de um personagem de tal envergadura, qualquer reclamação teria resultado vã.

          Melancolicamente fatalista é uma asserção de quem não ignora como sucedem as coisas no Continente embora se abstenha de muito indagar. Então, nas suas breves histórias prevalecem as, talvez, inconseqüentes - e danças e diversões e o interior das casas e o aspecto das mulheres e algum perfil notável e uma atitude surpreendente e uma situação curiosa e uma questão política. Porém quem sabe se entre elas não haverá as que fazem lembrar: no Continente, nem tudo foi feito de inocências.