domingo, 25 de julho de 1999

La carreta: querer dizer.


                                                                       Da carreta se via a fazenda como se vêem as pedras nas
 encostas das serras, como se vêem as árvores na beira do caminho. Como coisas de Deus, do destino, da fatalidade. Fazendas arborizadas, casas firmes, alguma pequena torre. Por que estavam elas encravadas nos cerros e tinha a carreta que rodar como rancho sobre rodas, sempre na estrada, sem achar um pedaço de terra que fosse de ninguém? Será que não haveria um campo no mundo, para dar de comer aos bois sem ter que pedir licença, um palmo de terra para semear um pouco de milho e esperar a colheita? Não haveria na terra tão grande, tão grande um pedaço de terra sem dono?                        

            Dos vinte anos até 1960, ano de sua morte, Enrique Amorim foi publicando, ininterruptamente e o resultado foi uma obra muito vasta,  compreendendo poesia, contos, ensaios, teatro e romance. Entre eles, La Carreta, que apareceu, pela primeira vez, em 1932.

            Na Literatura latino-americana, é, sem dúvida, uma obra muito especial. Não apenas pelas dúvidas que provocou entre os críticos a respeito de sua estrutura, como pela curiosidade, entre os estudiosos, a respeito de sua composição que se estendeu por vinte anos, mostrando-se em edições sucessivas, das quais a última, considerada definitiva, é de 1952.

            Se houve um grande número de mudanças no seu texto – e a edição do Fondo de Cultura Econômica (1996) apresenta as diferentes versões – a sua intenção primeira, refletir uma certa estrutura  social, elaborar uma nova leitura da realidade, permaneceu a mesma.

            Em breves textos, Enrique Amorim fixa tipos e cenas populares que, verdadeiramente, se constituem um documento sobre a vida no campo uruguaio. Num admirável poder de síntese, em algumas linhas, esboça perfis acabados. Assim, o de Cipriano, jovem dono da fazenda, observado, de longe, pela empregada.  Do narrador, breve menção a seus hábitos: fazer uma sesta curta, atravessar o pátio e ir no galpão conversar com a peonada. Da janela de seu quarto,  Tomasa o observa, retendo cada gesto e até algo de seu olhar.

            Também, algumas linhas bastam para fixar um dia de domingo. Pequenas frases que se prendem a um detalhe do vestuário, ao esboço de um gesto, à referência de um modo de ser para compor o quadro perfeito desse viver espontâneo de um casario à beira da estrada. Muitas vezes, filtrando-se no texto, a intenção de um dizer preocupado com o ser humano e seus direitos: a história de Florita, adolescente ainda, vendida pelo pai  de criação para se ressarcir dos gastos que teve com o seu sustento ou o desprezo no trato com a mulher. Outras, a clareza da frase comprometida para plantear situações próprias dessa estrutura social tradicional que marginaliza: o pequeno texto em que alude ao latifúndio ou aquele em que menciona rapidamente os que mal têm um lugar ao sol: um velho cego, muitas crianças que parecem viver sem pais, os dois sujeitos continuamente perseguidos pelo delegado, os miseráveis tripulantes do barco, dobrados de carregar sobre os ombros, caixotes cujo conteúdo jamais conheceram. Sempre, uma transparência a denotar o desejo de se fazer compreender pelas pessoas do povo. E isto, no dizer de Mercedes Ramirez de Rosiello, no seu estudo “Las circunstancias del escritor”, foi um objetivo que Enrique Amorim  jamais abandonou: dizer, sem mentiras, do campo e dos que nele vivem.

            E, certamente o fez, nesse querer, acumulando belezas.

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