domingo, 18 de julho de 1999

La carreta: saber dizer.


                        Quando tinha vinte anos, publicou Veinte años, em Buenos Aires, um livro de versos cujo prólogo, de Julio Noé, um seu companheiro de estudos, afirmava que não seria muito prolongada sua veia poética pois não era esse o seu idioma  natural. Mas que sim, logo seria um excelente escritor. O vaticínio se cumpriu. Enrique Amorim, uruguaio, nascido em Salto, em 1900, iria publicar, três anos depois, Amorim, um conjunto de quinze contos, entre os quais “Las quitanderas”. Este, já teria uma edição especial, logo no ano seguinte e, na história literária de seu autor, iria se constituir um texto de primeira importância, gênese de La Carreta, a sua obra mais editada. Apareceu, pela primeira vez em 1932 mas, somente dada por concluída vinte anos depois quando foi, novamente, publicada, desta vez, de forma definitiva. Entre as duas edições medeiam quatro outras e um trabalho intenso e longo de correções e de reajustes na composição aos quais se acrescentam outros relatos, capítulos independentes, um todo a fazer desse livro o texto admirável a resitir classificações que possam  lhe querer dar ou das discussões, mais ou menos simplistas, sobre a sua estrutura narrativa. Hás os que dizem tratar-se La Carreta de um agrupado de contos; outros, que se trata de um romance de estrutura incoerente. Entre essas e múltiplas outras asserções, como tantas vezes, Emir Rodríguez Monegal é extremamente feliz  ao explicar essa  “construção improvisada”, tida como o grande defeito da obra: “ o que procura expressar o narrador não é a estrutura implacável da obra literária, senão o fluir seguro da vida; não é a composição rígida, senão o significado; não é a proposição dramática senão a substância sinuosa, cambiante, variada até o incoerente do fluxo narrativo”.

            Já numa entrevista à Crítica, periódico de Buenos Aires, muitos anos antes da publicação de La Carreta, Enrique Amorim dizia que a vida não está constituída de um desenvolvimento contínuo mas se caracteriza por seus momentos  maiores que são os  interessantes.          Em La Carreta, no desejo de mostrar a vida no campo uruguaio como acreditava não ter sido, ainda, feito antes, o que ele fixa, são momentos .E,  embora, eventualmente, possam esses textos estar ligados por uma presença (a da carreta, a de um personagem), a independência de um em relação ao outro não lhes tira a perfeição formal de que estão constituídos e na qual, emergem soberanas,  muitas vezes, a composição  de um tipo ou  a descrição de uma festa campeira.

            Don Nicomedes é o comissário de Tacuaras, um amontoado de casas, no meio do campo: homem obeso, grande comilão, de excelente caracter, mas enérgico. Quando embrabece, ninguém pode contê-lo. Não se deixa engambelar e lhe agrada contemporizar com todos e se for o caso, faz vista gorda para as pequenas faltas. Bem barbeado, as gordas bochechas lhe dão um ar de comerciante tranqüilo.  Na alegria do circo recém chegado e em toda a agitação que cerca as suas funções ele vê uma farsa divertida e parece  honrado em ter sob suas vistas um entusiasmo tão especial. Ignora o  jogo e impede que o dono do circo instalado na praça que lhe fora cedida, cobre uma taxa das vendedoras ambulantes que nos intervalos das funções  querem vender suas fritangadas e seus doces.  Vê o alvoroço com bons olhos mas sem perder o sentido da medida: no seu entender, festa é bom por uns dias e, assim,  vai,  logo, tratando de fazer com que o circo vá embora.

            Logo no início do segundo capítulo, opondo-se ao clima de fracasso  que é o do espetáculo circense a se apresentar, provocando bocejos estrondosos, o triunfo da animação na praça: são breves frases, dizendo dos ruídos, dos sons, dos gostos adoçando as bocas, dos aromas que se espalham, da azáfama, de vai e vem. Todo um gentio tomando mate, jogando truco, fumando  cigarro de palha, que  fala e gesticula. E as mulheres riem e as crianças correm e há um gosto de viver que se espalha e que se impõe.

            E o tipo humano e a festa popular, na maestria desse narrar em que a vida irrompe alegre e calorosa, são verdadeiros registros a desdizer o quê, em tom repetitivo foi sendo afirmado pelos críticos sobre a visão do campo uruguaio de Enrique Amorim. Não há farpas nem arestas, nem tons lastimeiros nesses primeiros capítulos de La Carreta. Apenas a fixação de tipos e de festas  distantes desses outros tipos e dessas outras festas, regidos por padrões citadinos e rígidos e convencionais. Seus cultores desconhecem tudo que ultrapassa os seus horizontes e são, por isso, levados à incompreensão. Na verdade, não há que esquecer: no Continente, os mundos estão profundamente separados e, em geral, apenas um se expressa, acreditando que somente ele tem verdades incontestes a dizer.

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