Em
1929, no mesmo ano em que Rómulo Gallegos publica Doña Bárbara, uma das mais importantes obras da Literatura
Venezuelana, Teresa de la Parra vê Las Memorias de Mamá Blanca aparecer em
Paris, pela Librairie Stock. Constituem-se, ambas, entre as mais significativas
obras dos primeiros anos deste século, não somente na Venezuela como na
Literatura Latino-americana. Porém, se Doña
Bárbara questiona o presente e oferece caminhos para o futuro, Las Memorias de Mamá Blanca idealiza um passado que se mostra de
impossível retorno. Na voz de uma pessoa que exerce a profissão das letras e se atribui a tarefa de condensar e
corrigir o manuscrito que lhe foi legado por uma velha senhora se faz a
narrativa: lembranças de infância que os críticos afirmam ser um dos mais belos
livros de evocação infantil das letras hispânicas. Já com setenta anos vai se
lembrando do longínquo passado- esse tempo em que ainda era chamada de Blanca
Nieves, entre os seus cinco e sete ou oito anos, terceira menina em idade e
tamanho de uma escadinha de seis, junto com as quais reinava sobre tudo o que
existia dentro da propriedade rural, conhecida pelo sugestivo nome de Piedra
Azul - e refaz, com espontânea simplicidade, alguns dos momentos vividos: uma
ou outra travessura, o banho na represa, a ordenha das vacas, a chegada das
visitas. Presentes no relato, a pureza do espaço, a espontaneidade dos tipos, a
ternura dos gestos, a troça ligeira e o poético do dizer
A não ser nas poucas páginas finais de Las memorias de Mamá Blanca toda a ação
se passa na casa de Piedra Azul e nos seus arredores próximos, o trapiche e o
curral que, para a ingenuidade da narradora e de suas irmãs, se constituía o
clube, o teatro, a cidade. Mais do que um lugar de convívio era um espaço prazeroso
porque todo ele agradava à vista, ao
olfato, ao paladar, ao ouvido [..]). Nele, marcavam encontro todos os elementos
e todas as cores: a água, o fogo, o sol, todos iam andando nus e harmoniosos no
compasso que marca a imensa roda
majestosa e mansa da moenda. A
felicidade que ali desfrutavam era, então,
muito grande e muito simples: um apenas deixar-se viver, submetendo-se
às sensações. E o curral era para
onde se dirigiam toda manhã, cada menina com seu copo na
mão e, nos poucos metros que o separavam
da casa, sacudir um arbusto ou atravessar o capim alto era se banhar,
literalmente de orvalho. Iam para a ordenha e ao irromper na cidade das vacas já os tarros
transbordavam de leite, já se havia instaurado a ordem: a ordem da ideal cidade futura.
Em pleno ar, pleno céu, pleno sol, cada vaca estava contente na sua casa, quer
dizer, atada na sua árvore ou na sua estaca.
Na singeleza desse espaço rural reinam
tipos humanos que, humildes (talvez valesse dizer humilhados) na escala
social, não se deixam contaminar por
outras certezas que não sejam as próprias. Assim, Vicente Cochocho, o peão para
toda obra a quem é dedicado um capítulo inteiro: pior que mal vestido, simples peão de Piedra Azul, sem direitos de
meeiro, bois, rancho ele acumula funções: tocador de maracas, médico,
boticário, agente funerário, além de militar de grande engenho quando chegavam
as revoluções. Sua alma desconhecia o
ódio. Sendo quase do mundo dos vegetais,
aceitava sem se queixar, as iniquidades dos homens e as injustiças da natureza.
Mergulhado nas acéquias ou aderido às lajes em que trabalhava, mortificado ou não,
continuava como bom vegetal, dando impassível suas frutas e suas flores. Sempre obediente, sempre
terno seja no aporte de tudo o que lhe pediam, seja para exclamar em defesa do
burro maltratado por uma das meninas : Não
bata no pobre burro, olhe que ele não
lhe fez nada.
É tudo muito
ingênuo, muito isento de males e, apenas há lugar para uma ou outra breve situação de riso: quando
o pai da narradora, sentindo-se lesado
pelo peão que lhe cuidava as vacas, tratando-as com carinho e até cantando na
hora da ordenha, o despede e contrata outro. Porém, vê-se à frente de uma
negativa drástica do peão, cantor de renome que viera para substituir o
anterior: Eu não sou homem de cantar para
umas vacas como se fossem gente. Isso
sim que não! e foi-se embora.
Singelos os
espaços, singelos os tipos e singelas as situações que se oferecem, com
perfeição, para esse dizer poético, expressão constante de Las memorias de Mamá Blanca para refazer, harmonioso e delicado, refúgio perfeito porque enovelado em
lembranças já depuradas pelo passar do tempo, que desejam se tornar perenes sem
que nelas caibam as verdades do Continente.

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