domingo, 11 de julho de 1999

Teresa de la Parra. O refúgio


            Em 1929, no mesmo ano em que Rómulo Gallegos publica Doña Bárbara, uma das mais importantes obras da Literatura Venezuelana, Teresa de la Parra vê  Las Memorias de Mamá Blanca aparecer em Paris, pela Librairie Stock. Constituem-se, ambas, entre as mais significativas obras dos primeiros anos deste século, não somente na Venezuela como na Literatura Latino-americana. Porém, se Doña Bárbara questiona o presente e oferece caminhos para o futuro, Las Memorias de Mamá Blanca idealiza um passado que se mostra de impossível retorno. Na voz de uma pessoa que exerce a profissão das letras e se atribui a tarefa de condensar e corrigir o manuscrito que lhe foi legado por uma velha senhora se faz a narrativa: lembranças de infância que os críticos afirmam ser um dos mais belos livros de evocação infantil das letras hispânicas. Já com setenta anos vai se lembrando do longínquo passado- esse tempo em que ainda era chamada de Blanca Nieves, entre os seus cinco e sete ou oito anos, terceira menina em idade e tamanho de uma escadinha de seis, junto com as quais reinava sobre tudo o que existia dentro da propriedade rural, conhecida pelo sugestivo nome de Piedra Azul - e refaz, com espontânea simplicidade, alguns dos momentos vividos: uma ou outra travessura, o banho na represa, a ordenha das vacas, a chegada das visitas. Presentes no relato, a pureza do espaço, a espontaneidade dos tipos, a ternura dos gestos, a troça ligeira e o poético do dizer

             A não ser nas poucas páginas finais de Las memorias de Mamá Blanca toda a ação se passa na casa de Piedra Azul e nos seus arredores próximos, o trapiche e o curral que, para a ingenuidade da narradora e de suas irmãs, se constituía o clube, o teatro, a cidade. Mais do que um lugar de convívio era um espaço prazeroso porque todo ele agradava à vista, ao olfato, ao paladar, ao ouvido [..]). Nele, marcavam encontro todos os elementos e todas as cores: a água, o fogo, o sol, todos iam andando nus e harmoniosos no compasso que marca a imensa roda majestosa e mansa da moenda.  A felicidade que ali desfrutavam era, então,  muito grande e muito simples: um apenas deixar-se viver, submetendo-se às sensações. E o  curral era para onde  se dirigiam  toda manhã, cada menina com seu copo na mão  e, nos poucos metros que o separavam da casa, sacudir um arbusto ou atravessar o capim alto era se banhar, literalmente de orvalho. Iam para a ordenha e ao irromper na cidade das vacas já os tarros transbordavam de leite, já se havia instaurado a ordem: a ordem  da ideal cidade futura. Em pleno ar, pleno céu, pleno sol, cada vaca estava contente na sua casa, quer dizer, atada na sua árvore ou na sua estaca.

 Na singeleza desse espaço rural  reinam  tipos humanos que, humildes (talvez valesse dizer humilhados) na escala social, não se  deixam contaminar por outras certezas que não sejam as próprias. Assim, Vicente Cochocho, o peão para toda obra a quem é dedicado um capítulo inteiro: pior que mal vestido, simples peão de Piedra Azul, sem direitos de meeiro, bois, rancho ele acumula funções: tocador de maracas, médico, boticário, agente funerário, além de militar de grande engenho quando chegavam as revoluções. Sua alma desconhecia o ódio. Sendo quase do mundo dos vegetais, aceitava sem se queixar, as iniquidades dos homens e as injustiças da natureza. Mergulhado nas acéquias ou aderido às lajes em que trabalhava,  mortificado ou não, continuava como bom vegetal, dando impassível suas frutas e suas flores. Sempre obediente, sempre terno seja no aporte de tudo o que lhe pediam, seja para exclamar em defesa do burro maltratado por uma das meninas : Não bata no pobre burro, olhe que ele não lhe fez nada.

É tudo muito ingênuo, muito isento de males e, apenas há lugar para uma  ou outra breve situação de riso: quando o  pai da narradora, sentindo-se lesado pelo peão que lhe cuidava as vacas, tratando-as com carinho e até cantando na hora da ordenha, o despede e contrata outro. Porém, vê-se à frente  de  uma negativa drástica do peão, cantor de renome que viera para substituir o anterior: Eu não sou homem de cantar para umas vacas como se fossem gente. Isso sim que não! e foi-se embora.

Singelos os espaços, singelos os tipos e singelas as situações que se oferecem, com perfeição, para esse dizer poético, expressão constante de Las memorias de Mamá Blanca para refazer,  harmonioso e delicado,  refúgio perfeito porque enovelado em lembranças já depuradas pelo passar do tempo, que desejam se tornar perenes sem que nelas caibam as verdades do Continente.

 

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