segunda-feira, 30 de novembro de 1998

Perseguido

           Rafael Maluenda, desde muito jovem, se dedicou ao jornalismo. Durante  muitos anos foi redator de El Mercurio de Santiago do Chile e dele era diretor quando morreu em 1963. Também exerceu, austeramente, a crítica literária o que lhe valeu não poucos inimigos. E escreveu romances e contos. Dentre eles se distingue “Perseguido”, um conto que, no dizer de Juan Loveluck, se distingue pela sobriedade e plena claridade formal. Ele se constrói em duas partes que se intercalam. Uma, descreve a caminhada do perseguido na sua fuga e a outra, os movimentos do grupo de soldados que o perseguem.


         O relato se inicia com o perseguido internando-se num caminho sombrio e perigoso. O narrador lhe conhece os pensamentos e lhe descreve cada gesto, buscando a defesa em caso de necessidade. E nota o silêncio que o rodeia nesse caminhar noturno em que tudo que o envolve e ao cavalo se mostra em repouso: Protegidos pela sombra, ginete e cavalo seguiam com pausada marcha em caminho.

         Um breve espaço em branco irá separar este texto do seguinte em que será narrada a ação dos perseguidores: eram dez e tomaram a direção oposta. Vestiam longos ponchos e somente o quepe e os sabres lhe revelavam a profissão. Quase três horas os separavam daquele a quem buscavam.

          Novo espaço em branco e, outra vez, o caminho do perseguido. Agora, o narrador se alonga em descrever a paisagem, áspera, inacessível até para as cabras selvagens: aquelas paragens apareciam como visão de um mundo fantástico, um mundo de sombras onde tudo o sendeiro, os taipais, as árvores, as colinas, a massa informe do bosque, se destacavam negros sobre a indefinida negrura do espaço. E tudo era paz, antecedendo um amanhecer saturado de perfumes que de azul claro passou a róseo, representando essa claridade um perigo para o cavaleiro solitário.

            E houve logo o tilintar de metais, percebido pelo fugitivo e houve, logo o estrondo dos tiros e a perseguição louca através da nuvem de pó que se levantava na planície e a mais louca idéia de fuga: enfrentar a subida quase vertical, quase inverossímil.

            O ritmo do conto se acelera nessa ânsia de captura que domina os soldados. Nessa luta pela sobrevivência que leva o fugitivo cada vez mais para o alto na montanha inóspita.

             Os soldados o vêem no alto iluminado principalmente pelo primeiro raio de sol que emergia sobre os cimos, depois foi como se tivesse se dissolvido no ar. Quando  chegaram no cimo da montanha, nada encontraram além da terrível fenda que a separava em dois. E, incógnito para eles e para o leitor o destino do fugitivo. Como incógnita, a razão de sua fuga e da perseguição de que foi vítima.

              Como herói ele se mostra quando dribla as balas, quando ascende a montanha e se mostra iluminado, imune a pontarias. Quando desaparece sem deixar rastros. Vencidos, atônitos, os perseguidores. Como cenário, uma natureza vibrante, de águas sonoras, de pássaros, de perfumes, de luzes, estranha à paixão dos homens. Paixão que Rafael Maluenda apenas esboçou nesse Bem e nesse Mal que se enfrentam e cujas fronteiras se diluem no sugestivo emprego dos elementos dramáticos que acabam por se anular nesse misterioso final todo pleno de incertezas.

              E a beleza do relato em que se entremeiam, concisas, a rapidez da ação e o desenho da paisagem, fazem de “Perseguido” um dos mais perfeitos contos dessa Antologia do Conto Chileno que a Editorial Universitária de Buenos Aires publicou em 1964.

domingo, 22 de novembro de 1998

Os aprendizados.

            -Pode deixar o menino sem cuidados. Aqui eles endireitam, saem gente – dizia um velho alto e magro para o meu tio Juca, que me levara para o colégio de Itabaiana. Para quem vinha da vida solta do engenho era o início da prisão e do sentir-se muito só.

 Carlos de Melo, que logo será apelidado de Doidinho, era impaciente, fazia tudo às carreiras, chorava mas, no colégio irá comer, como os outros, a ração sem gosto, levará os bolos que lhe incharão as mãos, como os outros e, como todos (ou quase), fará progressos nos estudos. E, terá um amigo e um namoro feito de olhares e sorrisos.

            Os duros aprendizados se sucedem, a solidão daquele que nunca recebe visitas, os castigos sem sentido. A busca de socorro na carta escrita às escondidas. E a longa, lenta, contagem do tempo para as férias. A ansiosa espera do momento em que alguém venha buscá-lo para ir embora quando todos os alunos foram saindo com os pais.  E, na  incerteza, a mágoa se instalando, profunda, nesse vazio de mais um dia de espera.

Quando, finalmente, aparece José Ludovina, o enviado do avô para levá-lo, a alegria o faz esquecer as queixas. Já sentado no trem, pensa na fuga que planejara diante do abandono em que se vira e tudo o que vê se dilui na única imagem que prevalece: o engenho Santa Rosa para onde o trem corria às carreiras. Depois, a estação, os caminhos cobertos de lama, o açude, os canários cantando, o bom silêncio da estrada, quebrado de quando em vez pela enxada do pobre tinindo em alguma pedra escondida no roçado. E o coração batendo de chegar em casa. E os reencontros. Os moleques, ignorando quanto ele tinha aprendido, rondavam para contar as novidades; a recuperação da meninice com os pés descalços a correr pela horta, pela beira do rio vendo, outra vez, os trabalhadores com as calças arregaçadas, com lama até os joelhos, os pastoreadores com as roupas em tiras e sujas: limpavam as bicheiras do gado, separavam os bezerros das vacas de leite, botavam ração nos cochosmiseráveis sem nome, conhecidos, como os bois, por alcunhas. E era o agrado de todos e eram as  pamonhas comidas com a ganância de pobre em  mesa  de rico, e eram os lençóis cheirando a limpo, e o leite tirado na hora e o banho na água fria do rio. Era o querer imitar o trabalho dos moleques, levando a boiada para o pasto. A briga com o primo. A carta recebida, dando-lhe importância. A tristeza da morte do pai, empanando a alegria da festa de São Pedro com sua fogueira queimando no meio do pátio.

A trégua, porém,  termina no tempo que advém da volta para o colégio. Carlos de Melo chega na estação para pegar o trem, com a agonia de quem se despede do mundo, depois dos poucos dias de liberdade. E quando chega ao colégio, agora, já sabe o que o espera: tornar a ser o adolescente encarcerado.

Doidinho foi publicado em 1933, um ano depois de Menino de engenho e um ano antes  de Bangüê, a  trilogia com que José Lins do Rego inicia sua carreira de romancista. Como nos outros dois romances, a voz ficcional é um eu memorialista que registra essa tristeza de ser sozinho na idade que pouco entende de si mesmo e dos outros. Um despontar de sentimentos e emoções do qual não está alheio o mundo dividido em classes onde vive, mas que ele só percebe para ter pena dos pobres depois de ter lido Coração.

As férias, essa trégua feliz entre uma e outra prisão no colégio, então, serviu, também, para que ele se desse conta que no engenho Santa Rosa, o seu paraíso, havia gente mais pobre e mais infeliz do que aquela que povoava suas leituras na escola.

                               

                                  

domingo, 15 de novembro de 1998

Te Deum

          Foi publicado, primeiro, em Papeles de Son Armadans, revista de Palma de Mallorca, dirigida por Camilo José Cela. Um ano depois, em 1977, aparece na Revista Casa de  las Américas de Cuba: “Sobre la ausencia”, um texto de Carlos Droguett, escrito entre o 31 de agosto de 1975 e o 31 de julho de 1976. Um grandioso texto em que a realidade e a ficção se misturam para um registro que, certamente, jamais constará da História Oficial.

          Em princípio, é a descrição do Te Deum que a Junta Militar chilena mandou rezar pelo acontecido no dia 11 de setembro de 1973, em Santiago do Chile.

          Carlos Droguett inicia dizendo que na realidade, a cerimônia não chegou a seu término e que as páginas que seguem testemunham as circunstâncias em que o incidente aconteceu. Um incidente que, na escrita de Carlos Droguett é de um exacerbado fantástico que, no entanto se  ameniza se não for esquecido o quê acabara de ocorrer no Chile  e continuava a ocorrer. Antes de narrá-lo, porém, Carlos Droguett retorna no tempo para relatar a entrevista dos membros da Junta de Governo com o Arcebispo de Santiago para pedir-lhe a realização da cerimônia.Estavam numa enorme sala e as palavras eram como gotas no silêncio. Na rua, soavam disparos, ruídos de tropas, de carros de guerra e, na indiferença do recinto, penetrava um pouco da fumaça que os tanques alinhados, lá embaixo, queimavam ao longo da rua.

             O presidente da Junta se expressa, no dizer do narrador, balbuciando.  Sentia-se incomodado e, assim, sorria, para pedir o que lhe era tão urgente e imprescindível: um espaço para o ritual religioso que iria significar o acordo público da  Igreja para o crime que haviam perpetrado.  A resposta lhe chega com distante indiferença, pronunciada por alguém que fala sem alegria, com cansaço, com persistente aborrecimento. O arcebispo contou as botas presentes, negando permitir a cerimônia na Escola Militar – a Igreja não é um regimento, general – e começou a embrabecer para logo se enfurecer, guardando, porém, uma impassibilidade necessária para estender a mão em despedida e conduzi-los à saída. Disse, então, que a igreja da Gratidão Nacional era um belo templo, muito unido à História do Chile, a seu exército, erigida em ação de graças logo depois do fim da guerra do Pacífico, quando o general Baquedano regressou vitorioso de Lima [..]. Que lhes parece para cumprir a promessa que desejam ?

               Porque, no início da entrevista já havia sido muito claro: A Catedral permanecerá fechada, não a abriremos, não temos nada que celebrar, suponho que o senhor, general, saiba o que significa um Te Deum, de minha parte não vejo motivos para elevar ação de graças pelos trágicos acontecimentos do dia 11.

domingo, 8 de novembro de 1998

O Brasil de Policarpo Quaresma: Os tipos


           O empenho em ridicularizar a sociedade que, de uma forma ou de outra, o marginalizou fez com que Afonso Henriques de Lima Barreto pontilhasse Triste fim de Policarpo Quaresma, publicado em 1915, de sátiras e ironias, cristalizadas em situações e em vários tipos que povoam o romance.

            Por um lado, claramente expressa essa divisão de classes – as divisões que inventamos -, bem esquematizada em bem vestidos e mal vestidos, os elegantes e os pobres, os feios e os bonitos, os inteligentes e os néscios, percebidos na entrada do manicômio onde estava internado Policarpo Quaresma e só nivelados pelo mesmo “respeito”, pela mesma “concentração”, pela mesma “ponta de pavor nos olhos”. Ou, surpreendidos nas ruas: damas elegantes com sedas e brocados, evitando a custo que a lama ou o pó lhes empanem o brilho do vestido, operários em tamancos, peralvilhos à última moda, mulheres de chita.  Por outro lado, a constatação do ridículo, fixada em tipos que ora criticam uma situação, ora uma classe. Assim, Filizardo. Embora portando tal nome, é um pobre coitado que trabalha no roçado para Policarpo Quaresma. Inquirido pela moça da cidade, responde que não planta para si mesmo porque não pode esperar o crescimento do que plantou para comer, que a terra não é dele, que, além disso, há as formigas e que tampouco tem ferramentas pois essas são dadas pelo governo aos italianos e aos alemães. E, conclui: Governo não gosta de nós. Sua mulher é Sinhá Chica, uma velha cafusa, espécie de Medéia esquelética, cuja fama de rezadeira pairava por sobre todo o município. Não havia quem, como ela, soubesse rezar dores, cortar febres, curar cobreiros e conhecesse os efeitos das ervas medicinais: a língua de vaca, a silvina, o cipó-chumbo – toda aquela drogaria que crescia pelos campos, pelas capoeiras, e pelos troncos das árvores”.       Parteira, em toda a redondeza, fossem pobres ou remediados, era ela quem assistia os partos. Era ela quem eliminava os vermes das plantações, quem afastava o espírito maligno que se fazia presente para o malMas, o doutor Campos, o médico, dela não tinha ciúmes e nunca apelou para as leis que vedavam o exercício de sua transcendente medicina. Porque, no interior do país, as duas medicinas coexistem sem raiva, diz Lima Barreto pois ambas oferecem o que a população necessita. Assim, enquanto Sinhá Chica trata os miseráveis e os pobretões, o doutor Campos atende os mais ricos e cultos cuja evolução mental exigia a medicina regular e oficial. Ele era alto e  gordo, pançudo, um pouco, tinha os olhos castanhos quase à flor do rosto, uma testa média e reta; o nariz mal feito. Um tanto trigueiro, cabelos corridos e já grisalhos, era o que se chama por aí um caboclo, embora o seu bigode fosse crespo. Prosperara na sua clínica, embora não gastasse muita energia para isso. Tinha uma meia dúzia de receitas e conseguira enquadrar as doenças locais no seu reduzido formulário. E, presidente da Câmara Municipal, era uma das pessoas mais respeitáveis da pequena cidade. Quando, jovialmente, cortesmente, pedia um favor a alguém, não sendo atendido, aplicava as Leis Municipais fossem elas severas ou não.

          Igualmente misturando o exercício da Medicina com ambiciosos interesses pessoais, o outro médico do romance, doutor Armando Borges. Na convicção de que ser médico de um hospital particular  não dá fama a ninguém, ele queria cargo oficial, médico, diretor ou mesmo lente da faculdade. Graças às precauções que tomara desde estudante, tinha ótimas relações com o pessoal dos jornais e, assim, de vez em quando, publicava algum folheto – longas compilações cheias de citações em francês, inglês e alemão -, introduzido  por expressões laudatórias.  E comprava livros para forrar sua biblioteca e à noite, as luzes acesas, as janelas abertas, todo de branco, sentava-se a frente de um compêndio. Mas, livro de estudo ou romance, qualquer um deles, o fazia dormir porque o seu pedantismo, a sua falsa ciência e a pobreza de sua instrução geral não lhe permitiam grande compreensão de leituras.

            Então, Felizardo e Sinhá Chica têm, no romance uma função critica. Um, personifica  a indolência e falta de iniciativa para o trabalho, ainda que seja para o auto sustento o que lhe ocasiona a marginalização por parte do governo que se dispõe a ajudar somente aos emigrantes estrangeiros; outro, a crendice popular e a situação econômica dos desfavorecidos, levando à procura de recursos médicos diferenciados.

              Igualmente, função crítica, tem os dois médicos. O do interior, dando-se por satisfeito com seu receituário restrito e abusando do poder político que detém; o da cidade, procurando uma situação social elevada a custa de falsos expedientes. E, também, aqueles cuja função  é criticar o exército e os preconceitos e costumes. Todos eles estão perfeitamente inseridos no romance e representam essa realidade nacional cheia de erros, discernida por Lima Barreto nesses começos do século XX. Procurou retratá-la, buscando respostas. Principalmente, fazendo indagações.

domingo, 1 de novembro de 1998

O Brasil de Policarpo Quaresma: a paisagem

           Em 1915, publicava Afonso Henriques de Lima Barreto  o seu segundo romance: Triste fim de Policarpo Quaresma. De acordo com Eugênio Gomes, ele se nutre dos mesmos sentimentos norteadores de Vida e morte de M. J. Gonzaga de Sá  que, embora  publicado em 1919, já havia sido escrito entre 1906 e 1907. Sentimentos expressados nos temas que estão sempre presentes  na ficção de Lima Barreto: “o horror ao esnobismo”, “a xenofobia”, “a identificação com o fundo autóctone da raça”, “a revolta contra a doçura de índole que amolece o povo brasileiro”, “o desabafo contra o mundo burocrático”.

            Talvez pelo que nele está implícito – o amor pela terra brasileira –, devesse se acrescentar, também, as referências à paisagem. Na verdade, sempre alguns breves textos  se intercalando no relato.

Em Triste fim de Policarpo Quaresma, além do belo esboço das ruas do subúrbio do Rio de Janeiro, aparecem aqueles que fixam a natureza. Ambos, na segunda parte da obra, quando o personagem se retira para o “Sossego”, pequeno sítio a duas horas, por estrada de ferro, da capital.

            O capítulo “Espinhos e flores” se inicia com a descrição dos subúrbios. Lima Barreto os classifica, de acordo com a maneira como foram edificados, de  curiosos, responsabilizando para que assim sejam, a topografia montanhosa e, principalmente, os azares das construções: As casas surgiram como se fossem semeadas ao vento e, de acordo com elas, se fazem as ruas que se iniciam largas – como boulevares, ele diz – e acabam em estreitas vielas após terem dado voltas inúteis, parecendo fugir ao alinhamento reto com um ódio tenaz e sagrado. Ele observa a disposição das casas ora amontoadas, ora extremamente separadas umas das outras, a sua aparência ora humilde, de porta e janela ora imponente a se erguer sobre um porão alto com mezaninos gradeados, ora uma choupana de pau-a-pique, coberta de zinco ou de palha, ora uma velha  casa da roça. Também observa o desinteresse pelos jardins, em geral pobres, feios e desleixados e o descuido dos responsáveis municipais por ruas e pontilhões.

            Mas, vistos do alto, diz Lima Barreto, há alguma graça na visão desses subúrbios: As casas pequeninas, pintadas de azul, de branco, de oca, engastadas nas copas verde negras das mangueiras, tendo de permeio, aqui e ali, um coqueiro ou uma palmeira, alta e soberba, [...].

            Mas, sobretudo, é no relato dos afazeres de Policarpo Quaresma, no sítio, que aparecem os textos mais detidqamente relacionados com a paisagem. É uma profusão de luzes, são os ares doces, o farfalhar do mato, o piar das aves, um todo a esvoaçar: os tiês vermelhos, os coleiras, os anuns. Ciciar de cigarras, gemer de rolas, suspiros de bambus. Na cachoeira, a água estremecia na queda e vivia sob uma abóbada de árvores por onde penetrava o sol em pequenas manchas.  Os periquitos, de um verde mais claro, pousados nos galhos eram como as incrustações daquele salão fantástico.

            Dois textos sobressaem. Aquele que descreve a pujança e alegria da natureza face aos cuidados de Policarpo Quaresma: os botões a surgirem, tudo a reverdecer no renascimento das árvores que faz o contentamento do passaredo solto, as rolas em bando, os sanhaços, os papa-capins. De tarde como que todos eles se reuniam, piando, cantando, chilreando, pelas altas mangueiras, pelos cajueiros, pelos abacateiros, entoando louvores ao trabalho tenaz e fecundo do velho Major Quaresma; o outro, que fala dessa alegre exuberância que vai além do espontâneo de viver. Na compreensão do narrador, essa alegria é um entoar louvores àquele que nutriu e que protegeu essa vida até há pouco fadada ao descaso. Uma espécie de proselitismo – do qual o romance é pródigo –, fruto de uma certeza, cuja síntese poderia estar na expressão antiga: uma terra que em se plantando tudo dá. E, é o ideal visionário de Policarpo Quaresma que o faz ver, antes mesmo de conhecer as terras que comprara,  as laranjeiras, em flor, olentes, muito brancas, a se  enfileirar pelas encostas das colinas, como teorias de noivas; os abacateiros, de troncos rugosos, a sopesar com esforço os grandes pomos verdes; as jabuticabas negras a estalar dos caules rijos; os abacaxis coroados que nem reis, recebendo a unção quente do sol; as abobreiras a se arrastarem com flores carnudas cheias de pólen; as melancias de um verde tão fixo que parecia pintado; os pêssegos veludosos, as jacas monstruosas, os jambos, as mangas capitosas; e dentre  tudo aquilo surgia uma linda mulher, com o regaço cheio de frutos e um dos ombros nu, a lhe sorrir agradecida, com um imaterial sorriso demorado de deusa – era Pomona, a deusa dos vergéis e dos jardins!...